Por Solange Jobim e Souza
Psicóloga. Professora da PUC-Rio e da Uerj. Pesquisadora do CNPq e da Faperj. Coordenadora do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa da Subjetividade no Departamento de Psicologia da PUC-Rio
No mundo atual, a formação da criança desde a mais tenra idade acontece em estreita relação com a cultura do consumo. As crianças, desde os primeiros momentos da vida em sociedade, estão submersas em uma materialidade constituída por objetos que agregam valores aos modos de ser e estar no mundo. Deste modo, já nascem usando a fralda X, bebendo o leite Y e brincando com a boneca Z. Na interação com os adultos e com outras crianças os códigos da cultura do consumo se fazem presentes.
Ao entrarem em contato com as mercadorias, quer seja diretamente, quer seja por meio da publicidade, as crianças aprendem as regras de convívio social. Cada vez mais, se enfatiza a importância do “ter” em detrimento do “ser”. Os valores que situam as pessoas de um modo único e singular no âmbito de uma coletividade mais ampla vêm perdendo espaço frente ao processo de homogeneização da cultura de massa. Com muita freqüência, temos observado como os encontros entre crianças e adultos estão empobrecidos, porque, a cada dia que passa, são cada vez mais demarcados por experiências de acesso aos bens de consumo. Ir ao “shopping” se transformou em comportamento de lazer e entretenimento das massas, pois mesmo que não se compre nada, estar entre as mercadorias é manter acesa a chama do desejo para não se deixar de consumir em um futuro muito próximo.
Possuir determinados objetos significa agregar prestígio e reconhecimento entre pessoas. Ao consumir, as pessoas exercitam comportamentos de disputa e exclusão. Esta constatação deve ser considerada com muita atenção, pois se o consumo não deve ser visto apenas como um comportamento qualquer, dentre muitos outros, deve ser, ao contrário de uma atitude banalizada no dia a dia, um ponto de parada obrigatória para nos fazer pensar. Pensar sobre o quê? Sobre o modo como nós, crianças, jovens e adultos, participamos com palavras, gestos e atos na construção dos valores da cultura do consumo, para o pior ou para o melhor.
Consumir, portanto, em vez de se constituir em uma atitude irrefletida ou alienada pode e deve ser um ato político. Em outras palavras, o consumo deve ser motivo para nos fazer refletir sobre o modo como temos participado na construção das relações de poder que circulam no capitalismo avançado, sustentadas com muita competência e “expertise” pelos meios de comunicação.
A medida que percebemos que as relações de produção e consumo no capitalismo tardio são extremamente complexas, a questão maior é nos indagarmos sobre o modo como agimos, conscientemente ou não, neste contexto. Ao fazermos escolhas e nos posicionarmos frente às mercadorias, o que estas escolhas desencadeiam em nós e na coletividade? O problema não é nos posicionarmos contra o consumo em si dos bens culturais, embora isto também possa ser uma atitude louvável. O que não podemos deixar de fazer é tomar consciência sobre o modo como cada um de nós vem desenvolvendo valores e atitudes na vida, a partir da abundante e ininterrupta oferta de objetos transformados em ícones fictícios da felicidade suprema.
Ter objetos significa ser admirado(a), respeitado(a) e invejado(a) pelos outros. Se os objetos já conquistaram o poder de interferir nas relações que estabelecemos com as pessoas e passaram a ocupar um lugar de destaque na definição de nossos afetos e sentimentos interpessoais, é hora de reverter este processo, estranhando tais atitudes e se indagando sobre o que nos faz pensar que tal comportamento é natural. O desafio é fazer desta constatação um modo de re-inventarmos nossas relações com a cultura do consumo, valorizando atitudes que fortalecem o respeito pela vida, levando em conta as escolhas cotidianas sobre os objetos que consumimos.
Numa entrevista concedida a Contardo Calligaris, Oliviero Toscani, fotógrafo e publicitário, polêmico por suas propostas vanguardista, nos lembra que o gasto com a publicidade é maior em nossa cultura do que o gasto com a educação pública e que, portanto, a publicidade veiculada pela mídia é hoje mais formadora de nossa subjetividade do que o ensino escolar. Não podemos deixar de nos indignar quando nos damos conta de que o consenso da razão contemporânea é constituído pelas imagens dos sonhos publicitários. Entretanto, é prudente que nossa análise vá além do reconhecimento da ameaça que os novos meios de comunicação, especialmente a publicidade direcionada ao público infantil, exerce sobre todos nós.
Isto significa dizer que mesmo reconhecendo as estratégias abusivas do mercado aliado à publicidade para fazer girar a roda da fortuna, acreditamos que a passividade do espectador em relação aos meios de comunicação pode ser questionada e modificada. A formação da criança cidadã para uma leitura crítica das mensagens publicitárias pode ser uma das metas educacionais mais importantes na conjuntura atual. Pensar criticamente o mundo em que habitamos requer, contudo, saber formular as perguntas necessárias para provocar mudanças de atitudes.
Será que temos analisado o modo como nos relacionamos com a mídia em geral? Será que temos observado a qualidade do que nos chega pela janela da TV? Será que sabemos como a criança compreende a publicidade e os produtos culturais a ela direcionados? Será que, alguma vez, nos sentamos simplesmente junto à criança pra indagar sobre sua experiência como espectadora? Que lugar é este que devemos ocupar junto às novas gerações frente às mudanças nos processos de informação e produção de conhecimento na cultura do consumo? Que tempo dedicamos às conversas com as crianças? Escutamos o que elas dizem?
Sabemos o sentido que as crianças dão para as palavras que elas escutam de nós? Ao buscar as repostas para estas questões, percebemos que o tempo compartilhado entre adultos e crianças é cada vez mais escasso. Trabalha-se cada dia mais para o aumento do poder aquisitivo e, conseqüentemente, do consumo.
Pais chegam tarde em casa e as crianças estão atarefadas e solitárias. A família se reúne cada vez menos para conversas cotidianas. Este afastamento da criança do mundo do adulto, ou, melhor dizendo, a falência do diálogo entre as gerações, favorece a expansão do contato da criança com o mundo virtual e empobrece aquelas experiências de vida pautadas nas trocas interpessoais. Os adultos deixam de contar suas histórias às crianças, porque não sabem mais conversar sobre outra coisa, mas sim como os objetos conferem uma “dignidade” às avessas, porque nos desviam dos sentimentos essenciais e verdadeiros.
Enfim, os objetos têm ocupado em demasia o espaço das conversas e ficamos sem saber como recuperar no diálogo com os mais jovens as conversas sobre os temas que nos conferem legitimidade através das gerações – transformar memórias em histórias. Quando não contamos mais nossas histórias estamos contribuindo para a extinção daqueles que sabem escutar. Sem as histórias, desaparece com elas a comunidade dos ouvintes. Sem narradores e sem ouvintes, o individualismo recrudesce.
Pensar criticamente sobre o que estamos oferecendo às crianças e avaliar nossa participação, como co-autores, na construção do mundo em que vivemos, é o desafio a ser enfrentado no campo educacional hoje. As indagações são sempre bem-vindas, pois estimulam o pensar na contra corrente daquilo que se tornou hábito na vida cotidiana.
Nossa intenção aqui, longe de responder completamente aos muitos desafios postos pela nossa época, é trazer à tona questões polêmicas, orientar o pensamento crítico sobre o impacto da publicidade e da mídia em geral, superando as explicações fáceis, produto de concepções maniqueístas, que paralisam a ação de adultos e crianças em novas direções.
Será que o uso dos meios de comunicação de uma forma crítica pode se constituir em uma ferramenta importante e indispensável para a superação do enquadramento alienado de crianças e adultos na sociedade de consumo? O que pode a educação? Vale pensar, vale tentar. Ser cidadão na sociedade de consumo é principalmente se indagar sobre o lugar que estamos deixando de ocupar quando abdicamos de pensar coletivamente e fazer valer, com gestos, palavras e atos, a cumplicidade com a vida.
Texto publicado em Vida e Educação: A Revista da Educação Básica. Ano 5, no 22, (jan-fev), 2009, (p. 17-18). O texto também encontra-se publicado no site do Instituto Alana