Por Fabricio Carpinejar
Poeta, cronista e jornalista
Artigo originalmente publicado no jornal Zero Hora
O reencontro do professor com o aluno
A gratidão é desinteressada. Você terá, não por quem esteve sempre ao seu lado, mas por quem passou pela sua história e você ajudou sem perceber.
É comum professor reencontrar um aluno dez, quinze, vinte anos depois da sala de aula. Enfrenta, inclusive, dificuldade para reconhecer aquele estudante que foi criança ou foi jovem em sua turma, agora na feição madura. Leva um susto da saudade, do imprevisto, do esbarrão. Está aposentado, a escola desponta lá longe, lá trás, num carimbo inofensivo na carteira de trabalho, e o aluno mexe com as reminiscências:
— Você salvou a minha vida!
— Você mudou a minha vida!
— Você ressignificou a minha vida!
— Eu escolhi a minha profissão pela sua disciplina.
O professor se espanta com a revelação, não se lembra do que ele falou, nem das circunstâncias da conversa, muito menos do contexto da lição e da ordem das frases. E não importa a amnésia dos detalhes, o obscurecimento da face de centenas de alunos que se sentaram em sua classe, que povoaram a sua lista de chamada. É até natural ficar confuso. Mesmo que ele não se recorde de todos em particular, cada um se recorda dele de modo único.
O aluno se lembra de tudo: o professor o marcou decisivamente. Retoma vírgula por vírgula do seu pronunciamento, o que estava vestindo, que dia era. O aluno devolve o elogio. Restitui a descrição exata do momento. A boca do mestre soprou coragem quando o aluno mais necessitava, o coração do mestre disparou confiança quando o aluno se mostrava desacreditado, o peito do mestre emoldurou uma veemente recomendação quando o aluno sofria bullying.
Nossa estrada não é apenas ida. Você planta memórias para os demais ao seu redor, não somente para si. Quantas memórias já fincamos na terra, não imaginando qual seria a colheita? Largamos sementes e não notamos o quanto elas floresceram. Pusemos o grão ali e seguimos adiante.
Se você pensa que não tem valor, se você se vê em crise de identidade, se você se sente inútil: pegue a sua estrada e faça o caminho de volta. Retorne ao lugar de onde você veio, regresse para a sua origem, recupere os seus contatos antigos, visite a sua família, a casa em que nasceu, o bairro da infância, os seus primeiros empregos, o território de sua formação. Descobrirá uma diversidade de existências erguidas e de carreiras iniciadas pelo seu incentivo, de sonhos empurrados pelas suas palavras. E se fascinará com a sombra do bosque, com as árvores frondosas enfileiradas, todas filhas de seu gesto, todas germinadas de suas mãos.
Sem jamais cogitar, você possui a escolta de uma floresta humana. Sem dimensionar, você possui um exército de aliados. Não guardava a mínima noção do impacto de suas ideias, de seu amor, de suas aspirações, de sua vocação em tantos íntimos desconhecidos. Não pode mais chamar o que viveu de fracasso. Não pode mais chamar o que viveu de rumo perdido. Não pode mais chamar o que viveu de derrota.
Como você só andava obsessivamente para a frente, não havia colhido os resultados da sua interação com o universo. Não conhecia a força de seu legado, a complexidade de seu comportamento, a influência que exerceu sobre várias trajetórias. É por isso que grandes revoluções pessoais costumam acontecer quando você realiza o caminho de volta. Você volta para se enxergar nos outros.