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Escrever para as crianças

Por Bartolomeu Campos de Queirós
Escritor, ganhador dos Prêmios Jabuti, Academia Brasileira de Letras, Nestlé de Literatura e Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Falecido em 2012.

Ao fantasiar, experimento a liberdade. Não há preconceitos,  limites ou paredes nesse ato fundador do humano de buscar (em vão) decifrar o absoluto. Fantasiar é o exercício de indagar sobre o meu tamanho, para concluir, sempre, que minha inquietação diante da finitude não resiste horizontes. Há sempre um depois do depois. E só no trabalho criador encontro lugar para fazer da fantasia matéria primordial de meu ofício.

Mas a fantasia não convive com o individual. Por ser filha da dúvida, ela me abre para o diálogo, o encontro, a coesão. Daí a necessidade de lhe dar corpo para que ela se faça uma experiência coletiva. Não se é livre sozinho. Não se fantasia por vaidade, mas pela posse da fragilidade, por saber que com vários olhares se vê com melhor nitidez. Escrevo para o outro sem me afastar de mim.

A arte, bem como a literatura, nasce da liberdade de fantasiar e  não suporta prisões. Tentar engaiolar o fruto da liberdade é lhe cortar as asas, impedir seus vôos, que alcançam maiores distâncias quando impulsionados por muitos sopros. Conhecemos a necessidade da liberdade mas desconhecemos seu extensão. Por ser assim, compreendo, como tantos outros, que o homem possui o tamanho de sua fantasia. O sujeito alcança onde sua fantasia toca.

Ao fazer uma relação entre fantasia e liberdade quero compreender que tanto não se esgota a fantasia como é impossível impedir a experiência da liberdade quando diante da arte, tanto como criador como fruidor. E mais, por compreender a literatura como arte, sei que ela abre portas, mas a paisagem mora no coração do leitor. E, construída a partir da liberdade, a literatura liberta o leitor. Leitor e escritor se somam e escrevem uma terceira obra que jamais será editada. O texto literário revela, mas não invade a intimidade do leitor.

Daí, saber que meu texto surge diante do incômodo de perceber que meu olhar não esgota os objetos. Eles são além de mim. O olhar apenas acaricia a superfície. Escrever passa a ser um convite para que o leitor ajude a trazer para mais perto o mistério do mundo. Minha escrita surge do não saber.

Não tenho a pretensão de escrever “para” as crianças. Esse “para” me soa como se eu fosse um ser acabado, concluído. E eu sei que me faço e me refaço a cada momento sem arranhar o nirvana. Acredito que na infância somos mais densos, mais inteiros, mais completos. Convivemos com a fantasia, a liberdade, a espontaneidade, a inventividade sem saber os seus nomes. São elementos inerentes e necessários à vida, instrumentos de sobrevivência, ferramentas para operar o cotidiano. Crescer é diluir, ao longo da existência, essa fortuna que nos é creditada no nascimento.

Mas para mim não é tarefa simples escrever às crianças, como também não é simples ser professores ou pais. Nossa infância está tão distante de nós, e a palavra “não” já está bastante incorporado em nossa fala, de maneira quase definitiva. E o convívio com os mais jovens só se faz possível quando somos capazes de reinventar a infância perdida. Coisa possível a aqueles que preservam a liberdade.

Como me é impossível ser novamente criança, construo um texto com minhas lembranças de quando estive lá. Preservo na memória meus espantos, meus sustos, minhas tristezas, meus encantamentos diante de um mundo inteiro ainda por conhecer. Não quero um texto nostálgico por entender que não se volta na história, mas não nego a importância do conhecimento da tradição. Não se cresce sem deixar rastro. Procuro construir uma escritura que possa conversar com o mundo da criança, preservando seu universo, e não para lhe roubar a infância que irremediavelmente já perdi.

Sim, pretendo elaborar um texto claro, em ordem direta, com as palavras simples, o que não enfraquece uma escrita. Não quero, no entanto, negar aos jovens leitores as minhas dúvidas, minhas inquietações, meus desassossegos. Para tanto, me amparo nas metáforas: digo “isso” que também pode ser entendido como “aquilo”. Quero um texto capaz de abrigar a singularidade de cada leitor. Isto,suponho, só é possível quando descobrimos que  adulto não é sinônimo de verdade.

Mas diferente de outras linguagens da arte, para que tenhamos entrada na literatura é pré-requisito ser alfabetizado. O convívio da criança com a fantasia e a liberdade vai depender do processo de alfabetização que elegemos. Se compreendemos que alfabetizado é aquele que sabe apenas juntar e separar letras, a literatura se torna dispensável. Mas se alfabetizado é aquele que faz também uma leitura do social, do cultural, do político, a literatura se estabelece como o caminho essencial.

Assim, no meu ato de escrever penso também no objeto livro. Se faço um texto com o que há de melhor em mim gosto de vê-lo apresentado de maneira sedutora. Para tanto, o ilustrador se faz indispensável. Mesmo compreendendo que literatura é feita de palavras e que ler é apropriar-se das palavras, e que as coisas são nomeadas pela palavra, cabe ao ilustrador ser o meu primeiro leitor, capaz de expressar sua leitura por meio de linguagem plástica realizada a partir da sua liberdade e fantasia, para que o livro tenha outros entendimentos e outras admirações.

Mas tenho como crença que é o meu conceito de criança — e cada criança merece um conceito — é que vai dar norte à minha produção. Não penso a infância sem associá-la ao futuro. Presenteamos a criança com o mundo que construímos. Eu me nego a atribuir aos mais jovens o trabalho de “remendar” uma história feita de injustiças, violências, guerras, fomes. Que elas sejam construtoras de um tempo em que a soberania dos homens sobreponha a outros valores.

Por assim pensar, desprezo uma educação repetidora, que ignora a força da fantasia infantil, que nega espaço para que a liberdade alimente o sonho, que desconhece a precariedade do real e esquece que “a vida só é possível reinventada”. Recuso uma escola e uma sociedade que rejeita “educar” em detrimento do “adestrar”. Imagino uma escola em que a literatura não sirva apenas para abrilhantar o currículo, mas desejo um currículo feito de afeto, liberdade e fantasia, como convém à literatura e fundamental para que encontremos mais e mais a nossa própria humanidade.

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Artigo publicado na edição de nº 46 da Revista Nós da Escola, publicação da MultiRio

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