Carta a Drummond – por Silvana Gontijo

Flitabira: emoção, poesia e inspiração.

Caro poeta Carlos Drummond de Andrade, bom dia!

Estive em sua cidade natal para a terceira edição do Flitabira, que esse ano trouxe o tema Arte, Literatura e Correspondência. Advinha quem foi o autor escolhido pelos queridos Afonso Borges e Sérgio Abranches, para ser o homenageado: você, é claro.

Foi uma festa inesquecível, para dizer o mínimo. Plural, acessível, alegre e o que mais me encantou, transbordante de afeto. Nossas gentes, o povo das letras, os violeiros, os artistas visuais e todos do mundo da cultura abundaram belezas. Palavras foram ditas pelas mais diferentes vozes e ouvidas por plateias das mais diferentes idades. Como de costume, me encantaram as crianças. Dos pequetitos aos maiorzinhos os vi mergulhar em histórias lidas, contadas, desenhadas, representadas, cantadas e interpretadas. Nenhuma forma de expressão foi deixada de lado. Um festival como há muito eu não presenciava. Num dado momento, depois de conversar com crianças e professores da Escola Municipal Coronel José Batista caiu-me às mãos o livro “Conversas de Sá Maria com Drummond”. Um presente da Kátia, educadora local. Uma dessas pessoas que de um conhecimento novo logo se transformam em amizade antiga, uma querida. Entendi tudo. Aquele menino do poema Memória Prévia era eu, muito pequena, e também todas as outras crianças que por mim passaram. Concordei:

“…Viver é saudade
Prévia”.

Coisa mais linda, Poeta!

Mas preciso respeitar a ordem do seu tempo, sem saltos. Por isso copio aqui o poema, na íntegra.

“O menino pensativo
junto à água da Penha
mira o futuro
em que se refletirá na água da Penha
este instante imaturo.

Seu olhar parado é pleno
de coisas que passam
antes de passar
e ressuscitam
no tempo duplo da exumação.

O que ele vê
vai existir na medida
em que nada existe de tocável
e por isso se chama
absoluto.

Viver é saudade
prévia.”

Ah, os rios das nossas vidas! O seu, o Córrego da Penha. O meu, que com igual idade eu desbravava, o Córrego da Serra, que separava a nossa casa da de minha avó, em Belo Horizonte.

Reconheci o mesmo prazer de tirar sapato e meia e pisar na água fresca, de conversar com peixes e girinos e de desobedecer a ordem de não molhar, no meu caso, a barra da saia.

Ainda não tinha crescido e meu córrego da Serra ficou poluído. Nós crianças fomos proibidas de nadar e beber aquela água e em pouco tempo meu rio foi escondido, canalizado e sepultado. Nunca mais os lambaris e o gorgolejar de sua água que eu dormia ouvindo. Ali, no palco CDA, enquanto esperava a entrada das crianças e professoras para a segunda roda de conversa e enquanto lia as histórias dos seus passeios com Sá Maria, essa memória me inundou. Fez-se a luz! Entendi toda a minha devoção aos nossos rios. Descobri naquele minuto de onde vem essa mania de escrever, gritar e denunciar o que estamos fazendo contra eles. Entendi essa devoção, esse tudo fazer para inspirar, encantar e trazer para a causa do cuidado e preservação de nascentes, córregos e rios o maior número de pessoas que eu puder. Simplesmente não consigo desistir dessa luta enquanto viver e antes que seja eu a saudade prévia dos que me amam.

Tinha que retribuir todo o carinho da equipe do Afonso e todo o apoio das escolas de Itabira ao nosso programa, o Esse Rio é Meu. Entreguei o que gosto de fazer: uma nova personagem para a minha Turma do Planeta, a local Flora. Uma loba Guará que nasceu na minha visita à serra dos Alves, onde nasce o também seu rio Tanque, a convite do Denes Lott. E já que o tema era correspondência e a minha mesa falaria do seu poema “Cidade sem rio” pedi a ela que também lhe escrevesse e falasse do seu propósito. Acho que o que a Flora disse tem tudo a ver com o que tratamos.

Leia aqui o poema Cidade sem Rio

Leia aqui a carta da Flora para o Drummond

Agradeço pelo insight e por sua obra que me impregna desde sempre. Agradeço a todos os amigos e parceiros da aventura de viver o Flitabira e a todo o pessoal da prefeitura, em especial o Marco Antônio, a Laura e o Denes, que estão fazendo um trabalho deslumbrante pela qualidade da educação pública e pela defesa do patrimônio hídrico, histórico e cultural que são os nossos rios

Não quero deixar de mais uma vez dar os parabéns para a minha querida Conceição Evaristo pelo prêmio Juca Pato, o momento da entrega me fez chorar rios. Lindo demais!

E me despeço com aquele sentimento de saudade prévia.

Um beijo

Silvana

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