Na edição do dia 24 de novembro, o The Washington Post publicou, na íntegra, a fala da especialista em desenvolvimento infantil, Nancy Carlsson-Paige, ao receber o prêmio Deborah Meier. Um entre os inúmeros conquistados por seu trabalho, ao longo de várias décadas, em benefício de crianças e famílias.
A especialista destaca que as discrepâncias entre a educação infantil pública e privada são enormes. Nancy Carlsson-Paige foca sua luta na primeira. Ela declara nunca ter imaginado chegar à necessidade de defender o direito de as crianças brincarem; ou ter que lutar por espaços apropriados ao desenvolvimento de crianças pequenas; e ainda, contra a pressão para testá-las e avaliá-las. A especialista afirma: “As competências mais importantes em crianças pequenas não podem ser testadas”.
Maria Thereza Marcilio, gestora institucional da Avante – Educação e Mobilização Social fez uma tradução livre do texto para que este possa ser compartilhado entre as redes brasileiras e chegue ao maior número possível de pessoas, entre educadores, pais e militantes por uma educação infantil de qualidade. “Acredito que o texto é um estímulo às nossas reflexões e discussões”. Maria Thereza é integrante do Grupo de Trabalho de Educação Infantil e do Grupo Gestor da Rede Nacional Primeira Infância (RNPI), que tem participado ativamente das discussões sobre a Base Nacional Comum Curricular para a Educação Infantil e sobre avaliação, também para este segmento.
Confira a íntegra do discurso de Nancy Carlsson-Paige.
The Washington Post
Por: Valerie Strauss- 24 de novembro
Quão distorcida a educação infantil se tornou
Nancy Carlsson-Paige é uma especialista em desenvolvimento infantil que tem estado na linha de frente do debate sobre como melhor educar- e não educar- as crianças mais jovens. Ela é professora emérita na Lesley University em Cambridge, Massaschussetts, onde ensinou a professores por mais de 30 anos e é uma das fundadoras do Centro para Escolas promotoras de Paz da Universidade. Ela também é membro fundador de uma organização sem fins lucrativos denominada Defendendo a Primeira Infância, que apoia pesquisas sobre educação infantil e advoga por políticas adequadas para a primeira infância.
Carlsson-Paige é autora de Taking Back Childhood. Mãe de dois filhos artistas, Matt e Kyle Damon, ela também já recebeu inúmeros prêmios inclusive a Legacy Award da Robert F. Kennedy Children’s Action Corps pelo trabalho de várias décadas em benefício de crianças e famílias. Ela acabou de receber o Deborah Meier award da organização sem fins lucrativos National Center for Fair and Open Testing.
No seu discurso na cerimónia de recebimento do prêmio (com o nome da renomada educadora Deborah Meier), Carlsson-Paige descreveu o que tem acontecido no mundo da educação infantil na época atual de grandes interesses em testes, dizendo: “Nem nos meus maiores desvarios eu poderia ter previsto a situação em que nos encontramos hoje”. A seguir o pronunciamento dela, aqui publicado com a sua autorização.
Muito obrigada Fair Test por este prêmio “Deborah Meier Hero in Education”. A Fair Test faz um excelente trabalho de defesa e educação sobre práticas justas de testagem. Este prêmio traz o nome de uma das minhas heroínas em educação, Deborah Meier – ela é uma fortaleza para a justiça e democracia em educação. Espero que cada vez que esse prêmio for oferecido, nos permita render homenagem a Deb. Sinto-me privilegiada também por estar recebendo essa honraria ao lado de Lani Guinier.
Quando fui convidada para vir aqui hoje à noite, pensei em todas as pessoas que trabalham por justiça e equidade na educação que poderiam estar neste lugar. Estou pensando em todos eles agora e aceito esse prêmio em nome deles – todos os educadores dedicados às crianças e ao que é mais justo e melhor para elas.
É maravilhoso ver todos vocês aqui – tantos amigos e familiares, companheiros nesta luta para recuperar a educação pública excelente para todas – não apenas para algumas – as nossas crianças.
Eu amo o trabalho de toda a minha vida – ensinar aos professores como as crianças pensam, como aprendem, como se desenvolvem social, emocional e moralmente. Eu fico sempre fascinada com as teorias e a ciência do meu campo de trabalho e com a sua expressão nas ações e brincadeiras infantis.
Por isso, nem em meus maiores desvarios eu poderia imaginar a situação em que nos encontramos hoje.
Onde políticas, que não refletem o que sabemos sobre como as crianças pequenas aprendem, poderiam ser formuladas e seguidas. Nós temos décadas de pesquisa em desenvolvimento infantil e neurociência demonstrando que crianças aprendem ativamente – elas têm que se mover, usar seus sentidos, experimentar, interagir com outras crianças e com os professores, criar, inventar. Mas nestes tempos distorcidos, espera-se que crianças começando a pré-escola com 4 anos aprendam por “ensino rigoroso”.
E nunca nos meus maiores desvarios poderia imaginar que teríamos que defender o direito de as crianças brincarem.
Brincar é o primeiro motor do crescimento humano; é universal – tanto quanto andar e falar. Brincar é a forma com que as crianças constroem ideias e atribuem sentido ao que elas experimentam e sentem-se seguras. Observe os conceitos matemáticos que estão presente nas construções complexas que as crianças fazem na educação infantil. Ou observe uma criança de quatro anos de idade colocar uma capa e fazer de conta que é um super-herói após ter presenciado alguma cena amedrontadora.
Mas a brincadeira está desaparecendo das salas de educação infantil. Embora saibamos que brincar é aprender para crianças pequenas, nós temos visto esse brincar ser posto de lado para dar lugar à instrução acadêmica e com rigor.
Eu não poderia ter previsto em meus maiores desvarios que teríamos que lutar por espaços apropriados ao desenvolvimento de crianças pequenas. Ao invés de ação, experimentação, as crianças agora sentam em cadeiras por um tempo excessivamente longo para serem treinadas com letras e números. Os níveis de stress estão altos entre elas. Pais e professoras me dizem: as crianças ficam preocupadas por não saberem as respostas certas; têm pesadelos, arrancam cabelos, choram para não irem para a escola. Algumas pessoas classificam estas situações como abuso infantil e eu não posso discordar delas.
Eu não poderia prever nos meus maiores desvarios que nós teríamos que lutar contra a pressão para testar e avaliar crianças pequenas ao longo do ano e em quantidade excessiva-frequentemente administrando testes de múltipla escolha para crianças na pré-escola. Hoje, quando começam a frequentar a pré-escola frequentemente passam os primeiros dias não conhecendo a sala e fazendo amigos. Elas passam os primeiros dias sendo testadas. Aqui estão as palavras de uma mãe no início deste ano letivo:
“O primeiro dia da minha filha na pré-escola- sua primeira introdução à educação básica – consistiu quase totalmente de avaliações. Ela chegou às 9:30 e eu a busquei às 11:45. Neste período ela foi avaliada por cinco professores diferentes, cada um deles um estranho, que pediam que ela fizesse alguma tarefa.
Quando eu fui buscá-la, ela não queria falar sobre o que tinha feito na escola, mas dizia que não queria voltar. Ela não sabia o nome das professoras, não fez amigos. Durante a tarde enquanto ela brincava com seus bichinhos no quarto, eu a escutei treinando-os com letras e números”.
As competências mais importantes em crianças pequenas não podem ser testadas – todos sabemos disso. Dar os nomes de letras e números é superficial e quase irrelevante em relação às capacidades as quais queremos ajudar as crianças a desenvolver: auto regulação, habilidade de resolver problemas, capacidade de se relacionar e de expressar sentimentos, imaginação, iniciativa, curiosidade, pensamento original – estas capacidades conduzem ao sucesso na escola e na vida e não podem ser reduzidas a números.
No entanto, hoje em dia, todo o dinheiro e recursos, o tempo dedicado ao desenvolvimento profissional têm sido dedicados a instrumentalizar os professores a usar os testes que são requisitados. De alguma maneira, supõe-se que as informações geradas por estes testes sejam mais valiosas do que a capacidade da professora de observar as crianças e compreender as suas habilidades no contexto do seu desenvolvimento integral na escola.
A primeira vez que eu constatei em que muitas das pré-escolas deste país estavam sendo distorcidas foi durante uma visita a um programa em uma comunidade de baixa renda ao norte de Miami. A maioria das crianças estava no programa de almoço livre ou com preço reduzido[1].
Havia 10 classes- entre 4 e 5 anos. O financiamento do programa dependia dos resultados dos testes, assim – não poderia se esperar algo diferente- os professores ensinavam para o teste. Crianças que tivessem baixo desempenho, eles me informaram, tinham sessões extras de treino em leitura e matemática e não participavam das atividades de arte. Eles usavam um programa de computador para ensinar a crianças de 4 e 5 anos a soletrar. Uma professora reclamou comigo que algumas crianças escreviam fora da linha.
Em uma das pré-escolas que visitei, as paredes estavam vazias assim como o resto da sala. A professora estava testando um garotinho no computador em um canto. Não havia ajudantes. As outras crianças estavam sentadas nas mesas copiando palavras do quadro de giz. As palavras eram: “Silêncio. Sentem-se nos seus lugares. Mãos sossegadas”.
A professora gritava repetidamente para elas do seu canto de testagem: Fiquem quietos. Calados.
A maioria das crianças parecia amedrontada ou distraída e um garotinho estava sentado sozinho. Ele chorava silenciosamente. Eu nunca esquecerei como estas crianças se comportavam ou como eu me senti ao observar, o que eu chamaria de, seu sofrimento neste contexto tão alienado das suas necessidades.
Comunidades de baixa renda, privada de políticas e serviços públicos como a que visitei são os lugares onde as crianças são submetidas a doses pesadas de testes e treinos dirigidos pelos professores. Não é a mesma coisa nos subúrbios ricos onde as crianças têm oportunidade de frequentar programas de educação infantil que oferecem artes, aprendizagem baseada em projetos e brincadeiras. É a pobreza – o elefante na sala- que é a raiz dessa diferença.
Alguns meses atrás, fiquei alarmada ao ler um relatório do Department of Education Office for Civil Rights mostrando que mais de 8000 crianças de pré-escolas públicas em todo o país foram suspensas pelo menos um dia ao longo do ano letivo, muitos mais de uma vez. Para começar, quem suspende uma criança na pré-escola? Por que e para que? O conceito em si é terrível e bizarro. Mas 8000? Continuei a ler o relatório para descobrir que um número desproporcional destas crianças eram meninos negros e pobres.
Há uma conexão, eu sei, entre estas suspensões e as políticas de reforma educacional: as crianças em comunidades pobres estão vivenciando salas deficientes onde são submetidos a doses pesadas de instrução e testagem. Elas têm que sentar, ficar caladas e aquiescer. Muitas crianças pequenas não podem fazer isso e nem deveriam.
Eu voltei desta visita a centros de Miami North em desespero. Felizmente o desespero rapidamente se transformou em organização. Com outros educadores nós começamos a nossa organização Defendendo a Primeira Infância. Nós temos fantásticas lideranças de primeira infância conosco (algumas estão aqui hoje à noite: Deb Meier, Geralyn MLaughlin, Diane Levin e Ayla Gavins). Nós temos uma só voz na defesa das crianças pequenas.
Nós publicamos relatórios, escrevemos para o público em geral, fazemos vídeos e mandamos para o youtube, fazemos palestras e damos entrevistas sempre que temos a chance.
Fazemos tudo isso com pouquíssimos recursos. É quase cômico: a Gates Foundation já gastou mais de US$ 200 milhões para promover a Base Nacional Curricular. Nosso orçamento na Defendendo a Primeira Infância é 006 % disso.
Nos colaboramos com outras organizações. Fair Test tem nos ajudado muito. Nós também colaboramos com – Network for Public Education, United Opt Out, muitos grupos de pais, Citizens for Public Schools, Baass Teachers, Busted Pencils Radio, Save Our Schools, Alliance for Childhood e ECE Policy Works. Há uma rede poderosa lá fora de educadores- pais e estudantes- e nós vemos que eles fazem a diferença.
Nós compartilhamos uma visão comum: Educação é um direito humano e toda a criança tem esse direito. Uma educação excelente, pública onde a aprendizagem é significativa- com artes, brincadeiras, realizando projetos e com a oportunidade de aprender a ser cidadão para participar- ativa e conscientemente- nesta democracia crescentemente frágil.
[1] Programas de assistência social
(Informações e tradução: Avante)