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Sobre fatos e argumentos

Por Mariana Amado Costa.

Comentaristas de jornais, escritos e televisivos, têm repetido com frequência, nos últimos dias, o dito “contra fatos, não há argumentos”. Em geral, o emprego tem sido relativo a constatações científicas quanto à pandemia de Sars-Cov-2 ou a alegações e denúncias do presidente da República ou contra ele.

Nunca vou esquecer do comentário de um assessor palaciano de administração passada, diante de um embate entre políticos interessados na redução da área de uma unidade de conservação e técnicos do Instituto Chico Mendes. Os primeiros diziam “estivemos pessoalmente lá e comprovamos que há 200 famílias de pequenos agricultores dentro da unidade, que precisam ter seus direitos garantidos”, enquanto, por sua vez, o ICMBio retorquia “fizemos um levantamento de toda a área e temos tudo mapeado, há apenas sete famílias, os demais ficaram fora dos limites da unidade”.

Não lembro dos números exatos, mas era mais ou menos essa ordem de grandeza. Com cada lado agarrado nas informações que afirmava reais, verificadas in loco, segundo eles, a discussão não avançava. O assessor, encarregado de mediar a reunião, teve que encerrá-la sem resolver o impasse: “bem, senhores, há divergências fáticas”.

Adorei a expressão, aparentemente paradoxal, mas muito precisa, “divergência fática”. Desse mesmo assessor, inteligente e preparado, embora nada alinhado com minhas convicções pessoais, ouvi outra expressão encantadora, que não conhecia e anseio por uma oportunidade de usar. Para falar sobre algo irremediavelmente decidido ou encerrado: “é prego batido com a ponta virada”. Há muito a se aprender com quem pensa diferente de nós.

Por outro lado, na falta total de argumentos (e de fatos, e de pensamentos), sempre se pode apelar para o velho truque de culpar o adversário daquilo de que se é acusado. E colocar-se no papel de vítima.

Desde bebês, aprendemos, por repetidas experiências, que o choro é uma grande ferramenta de manipulação. Usado por quem é indefeso e desarmado e, por isso mesmo, diante de quem nos desarmamos. Mas as crianças crescem e desenvolvem afetos, percebem que o mundo não gira em torno delas, e conquistam outras ferramentas cognitivas, que as ajudam na busca de um equilíbrio entre responsabilidade e liberdade. Um amadurecimento, durante o qual aprendemos as dificuldades e as delícias de viver em sociedade.

Talvez o grande trunfo do atual presidente do Brasil seja justamente sua oligofrenia cavalar, que faz com que pareça (para alguns) inimputável. Assim como minha geração mima seus filhos únicos, e ele próprio mima sua prole, a sociedade e suas instituições resistem a impor-lhe limites, a cobrar-lhe responsabilidade, a puni-lo — mostrando que malfeitos têm consequências. A palmada foi proibida (que bom!) e essa criança é pequena demais para entender uma conversa séria. Assim vamos tocando, deixando colocar o dedo no nariz — o que é inevitável, com o clima de Brasília, que resseca a meleca —, falar palavrão, desrespeitar os mais velhos, negligenciar os estudos, comer porcaria, rasgar a Constituição, e tudo mais.

Toleramos o que não toleraríamos de um adulto. Num passado longínquo, às vésperas do segundo turno das eleições de 2018, amigos queridos explicavam como iam votar: “as coisas que ele diz são fanfarronices, e se tentar fazer, o Congresso e o Supremo não deixam”.

Mas as instituições parecem não querer se responsabilizar pelo monstrinho. Ele aparece com a cara toda lambuzada de leite condensado — menino, você foi comer besteira na hora do almoço? — responde que não, esconde desajeitadamente a lata nas costas. Temos agido como pais que fingem que não vêem.

Os que se deleitaram durante a campanha com elogios à tortura e ameaças de eliminação dos adversários estão voando em céu de brigadeiro, navegando em mar de almirante. Isso metaforicamente, porque, na real, estão lutando em guerra de generais, guerra falsa, diversionista, com todos sob uma louca hierarquia de comando, que atribui super poderes a um capitão indisciplinado. São os inamovíveis 30% que vivem num mundo paralelo, onde a vontade vale mais do que o bom senso.

Então, o que fazer, se chamamos à razão quem não quer pensar, quem tapa as orelhas com as mãos e fica cantarolando lá-lá-lá bem alto, para não ouvir o contraponto? Lidar com a materialidade dos fatos pode não ser tão simples quando a verdade é construída a posteriori, para encaixar-se em argumentos fluidos.

Por mais que se mostre o absurdo, é difícil ter uma discussão produtiva em tal situação. Aliás, com falas tão exdrúxulas que desafiam a gramática e a lógica, é impossível interpretar com precisão, o que já é um primeiro desafio a ser superado. Apesar disso, da ambiguidade acidental ou intencional, o discurso é claramente autoritário e de desprezo pelo povo. Os defensores do descalabro contra qualquer argumento, representados por milicianos acampados na Esplanada, dão medo. Mantenho, no entanto, a confiança de que o prego foi cravado, mas sua ponta ainda não foi virada.

Dois livros me feriram muito, O senhor das moscas e Ensaio sobre a cegueira. O romance do  Saramago foi mais importante em minha vida do que gostaria de admitir, pois volta e meia reaparece em sonhos e já foi tema de algumas sessões de análise. O que me irrita nas duas obras é que partem do que, no meu entender, são falsas premissas sobre o caráter humano. Os fatos e argumentos narrados, porém, são construídos com primor.

Esta semana, no meio do furacão de péssimas notícias, li uma matéria linda (no Guardian) sobre “o verdadeiro senhor das moscas”. O historiador alemão Rutger Bregman que, pelo que conta, desenvolveu o mesmo desgosto que eu pelo livro de William Golding, relata um caso real — expondo fatos, em toda a sua materialidade — ocorrido nos anos 60. Seis meninos de Tonga, um reino insular no Pacífico, haviam roubado um barco e fugido numa aventura, quando naufragaram. Depois de oito dias à deriva no mar, com fome e sede, chegaram a uma ilha deserta, onde viveram por quinze meses, até serem resgatados por um navegador australiano.

Foram encontrados em boa forma. Dividindo o trabalho diário, haviam conseguido manter-se abrigados e com uma fogueira permanentemente acesa, cultivaram inhame selvagem, improvisaram instrumentos musicais, e montaram, até mesmo, espaços para se exercitar. Desde o início, decidiram não brigar. Quando acontecia de discutirem, davam um tempo, para a zanga passar. Um deles quebrou a perna e foi tratado pelos amigos, que assumiram suas tarefas durante a convalescência. Mais tarde, quando voltaram para casa, exames mostraram o osso perfeitamente recuperado.

Bregman diz que a estória mostra o quanto somos mais fortes se podemos contar uns com os outros. Entendo que, além de mais fortes, nos tornamos, sobretudo, mais humanos. Um osso da perna, que é longo, quebrado e consertado em condições selvagens de luta cotidiana pela sobrevivência, revela compaixão, solidariedade e cuidado, é um marco da civilização.

Mariana Amado Costa é comunicadora, jornalista e trabalha com políticas públicas para o meio ambiente. Gosta de pessoas, plantas, bichos, música e livros.

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Maria Tornaghi
Maria Tornaghi
3 anos atrás

Prazer ler a argumentação clara escrita com leveza e profundidade,

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