Por Enilde Faulstich
Resultado de contatos com outras línguas, o Português surgiu como língua na extensão geográfica de Portucale, na Península Ibérica, e formou um patrimônio autônomo de Portugal, de tal sorte que se desgarrou de outras línguas muitas próximas com as quais convivia. Esse intróito serve pra dizer que a língua portuguesa, para chegar à língua de hoje, passou por inúmeras variações no tempo e no espaço e criou variedades, entendidas como normas de uso.
Esses modos normais de falar convergiam para um modelo, que se fazia necessário, como um padrão de língua. Esse padrão enfeixava as diversas variedades e, por conseguinte, as diversas normas, que, do ponto de vista da língua, se fosse ‘adulterado’, ou a variedade voltava a ser entendida como tal, ou era entendida como erro de uso, segundo a consistência da época. O padrão – estrutura abstrata a ser seguida, que nada mais era do que uma norma -, passou a ter papel político forte na criação do estado nacional.
Como era preciso navegar, era preciso também que os fatos, vistos no novo mundo, fossem registrados, escritos; para escrever, era preciso haver minimamente uma unidade. Era o social falando mais alto que o linguístico. E, como se percebe, a língua em si nada tinha a ver com isso.
A unidade se valia do padrão para criar uma forma de escrever, sem que fosse ipsis verbis cópia da fala, pois em nenhum estágio da língua isso se dá. Já desde épocas primitivas é possível constatar que, no decorrer do tempo, a variação era muito acentuada, primordialmente a gráfica, enquanto a estrutura da língua, cada vez mais fiel a uma forma de escrever, servia de modelo para os aprendizes. Dessa cópia de modelos, deriva outra interpretação para os fatos gramaticais registrados nos documentos, que passaram a ser entendidos como uma norma culta da língua. O recado era: culto é aquele que faz igual ao que sabe mais. E as gramáticas modernas e contemporâneas passaram a representar, sob cada regra, um exemplo da ‘boa escrita’, segundo os escritores consagrados. Equívocos à parte, gramáticas e dicionários não são livros didáticos, são obras de consulta, por meio das quais os usuários da língua tomam decisões.
Esses manuais de consulta têm público certo e conteúdo definido, em vista de que oferecem material para discussão em torno de um objeto da linguagem, que ali está cristalizado, mas que é vivo e com cor local, como é a Língua. Por sua vez, o livro didático é uma obra própria para o ensino porque segue os programas escolares. Se o livro didático tem por meta o ensino de um programa escolar, o conteúdo deve estar de acordo com a política escolar estabelecida. Porém, o corpo social reclama quando o desacordo entre conteúdo de língua padrão e política educacional se faz presente. Assim acontece neste momento em que um livro didático leva para a sala de aula o que deve constar de um manual cujas noções servem para a discussão e para a tomada de decisões. O livro didático, como a gramática e o dicionário, cristaliza o conhecimento e passa a ter caráter de verdade plena.
Nesse caso, nem todos os professores – ainda que sejam professores de português – atingem o fundo da questão para discutir, convencer e ser convencido do que é certo ou errado na Língua ou sobre a Língua e, por isso, o que era pra ser aprendido passa a ser igual ao que todos já sabem e a escola perde sua função. O ponto de partida para o acerto e para o erro tem de estar em algum lugar, e esse lugar abstrato é o padrão da língua, que é socialmente aceito. No caso de divergências, a língua portuguesa nada tem a ver com isso, reitero. Quem tem a ver são os que, num espaço social delimitado, têm o português como modo de expressão e, para isso, frequentaram a escola durante anos e adquiriram maior ou menor escolarização. Nesses termos, qualquer preconceito com relação a falar bem, ou falar mal não é linguístico, mas social, logo o argumento de ‘preconceito linguístico’ deixa a desejar.
Se um livro didático, selecionado para o ensino, confunde variação com padrão gera polêmica, porque há uma grande diferença entre falar uma língua e ensinar a falar e a escrever essa língua. O livro didático de português não é um livro para o ensino da língua oral; o foco é principalmente o português por escrito, objetivo de quem está na escola, no caso, de professores que ensinam e de alunos que aprendem. Como é sabido, ascende socialmente quem sabe escrever – eis o que solicitam os concursos públicos, tão usados como parâmetros de conhecimento no Brasil. Assim sendo, expor num livro didático usos de falta de concordância como ‘adequados’ é inserir num lugar errado o que o social não quer nem ouvir, nem ver por escrito, pois a própria escola, com papel social, político, educacional e pedagógico, reprova o erro.
Mediante essa constatação, a discussão em torno do livro adotado pelo Ministério da Educação para o EJA deixa à vista que um conteúdo inadequado foi registrado num lugar errado, no livro didático. Ali não é o lugar para dizer que está correto o que provoca estigma – a falta de concordância de número – que é uma das formas mais marcadas como erro diante da norma padrão da Língua Portuguesa.