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O sonho de Anésia e ler o mundo: Paulo Freire

Por Ana Miranda
Romancista e atriz
Artigo originalmente publicado no jornal O POVO

Tivemos o Dia da Alfabetização e a efeméride me lembrou um dos momentos felizes de minha vida, quando ensinei Anésia a ler. Era em São Paulo, ela morava num subúrbio e vinha todos os dias trabalhar no lugar onde eu morava. Tomava dois ônibus para ir e dois para voltar. Perguntei: Mas, Anésia, se você não sabe ler, como sabe quais são os seus ônibus? Eu sei pelo número, ela respondeu, era mais fácil decorar os números, sem significados, sem sons, apenas formas. Anésia sonhava aprender a ler.

Eu disse que ia lhe ensinar. Ela ficou pálida, achou que não ia conseguir, e eu logo lhe dei uma folha de papel e a fiz escrever o seu nome, sobre pontilhados. Ela rabiscou trêmulas linhas, as mais maravilhosas letrinhas que formavam o nome: A N É S I A. Está vendo? É fácil! E quase chorando ela disse que ia tentar. Fui atrás de cartilhas, algo que me desse um método, mas acabei eu mesma criando o método, pois ela não sabia nem segurar um lápis. Foram páginas e mais páginas de pontilhados que ela devia cobrir. Ziguezagues, sequências de ondas, de curvas… Depois as letras, as sílabas, as palavras, as frases simples, as mais complexas…

Todos os dias Anésia levava o material e na manhã seguinte chegava abraçada ao caderno, trazia o dever de casa feito. Com imenso sacrifício, cansada, pois ao chegar em casa ainda tinha de cozinhar, lavar, passar, educar os dois filhos adolescentes. Por vezes dormia apenas quatro horas numa noite, vinha cochilando no ônibus, sempre abraçada ao caderno. Já sabia ler e escrever o nome do ônibus – ela falava ôbinus, foi difícil aceitar a forma nova.

Aprendeu a ler em pouco tempo, e fui lhe dando cultura geral: mostrei-lhe um atlas, ela nunca tinha visto um mapa do Brasil, nem a forma redonda do planeta, nem sabia que havia muitos outros países, a Via Láctea e foi aprendendo, fascinada, ou incrédula. As constelações, a democracia, as contas, o tempo colonial, o do Império, os povos indígenas de quem ela descendia, os povos africanos de quem ela também descendia… As injustiças sociais, o capitalismo, a prosa e a poesia… Era um mundo imenso que se mostrava, e ela dizia que nunca imaginara estar tudo ali naqueles… livros. E Anésia passou a ler livros.

Um dia chegou, feliz, disse que seus filhos haviam comentado que ela sabia mais que eles e sua letra era melhor do que a letra deles. Dava aulas aos filhos. Anésia tinha uns cinquenta anos. Seus olhos antes sombrios se encheram de luz e força. Ela se matriculou numa escola noturna e passou a fazer o ensino fundamental, com o mesmo sacrifício.

Um dia eu ia embora, nos abraçamos, e ela me prometeu terminar os estudos. Tempos depois voltei a São Paulo e Anésia veio me visitar. Com a família, em seus melhores trajes, cheirando a flores, sorrindo. E ela disse: Viemos aqui para lhe agradecer. Mas era eu quem tinha a agradecer, aquela iluminação de um ser tão puro e honesto, como era Anésia, me dava orgulho de mim mesma, um pequeno gesto, mas emocionante. Anésia terminaria o segundo grau e se sentia completa, segura, como se tivesse renascido. Ler, ela disse, é existir.

Ler o mundo

Gosto mais de aprender do que de ensinar. Mas quando ajudava Anésia a aprender a ler as palavras, ficava imaginando o sentimento de uma professora, um professor, ao alfabetizar uma criança ou um adulto. Ao ver aquela criatura ler a primeira palavra. Deve ser um sentimento de alegria misturado à sensação da bondade e de missão cumprida. Um trabalho generoso, e talvez o mais importante numa sociedade. Ensinar. Dizem que no Japão todos se curvam diante do imperador, mas o imperador se curva somente diante dos professores.

Sim, eu sei, algumas das pessoas mais sábias do mundo nunca aprenderam as letras. O Saramago, mesmo, disse isso de seu avô: O homem mais sábio que eu conheci em minha vida não sabia ler nem escrever. Conheci algumas pessoas assim, lavradores, pescadores, músicos, jardineiros, poetas, pintores de parede… Uma vez meu neto me disse que, se eu fosse para o mar numa jangada, eu, que li milhares de livros, não iria sobreviver, mas o pescador, que nunca leu nenhum livro, voltaria vivo. E eu disse ao meu neto: Tem razão! Mas ele sabe ler o mundo! Aprendeu a ler as correntezas, as cores da água, as estrelas, o movimento das velas, os ventos… A leitura do mundo precede a leitura da palavra, dizia Paulo Freire.

Antes de aprender a ler as palavras, Anésia tinha aprendido a ler o mundo. Ela foi a minha única experiência de alfabetização, e a sensação que tenho é que alfabetizei a mim mesma de uma descoberta. Sentia-me uma pessoa melhor, graças a Anésia. Foi bonito. Aprendi mais do que ensinei. Sentia-me uma pequenina discípula de Paulo Freire. No começo de sua vida ele alfabetizou trezentos lavradores em quarenta dias. Por isso foi preso.

Quando criei um método de ensinar para Anésia, havia a leitura de algum livro de Paulo Freire, que ficara em minhas memórias não tão distantes. Pressentia que Anésia não compreenderia jamais as palavras se não tivesse uma percepção mais ampla do mundo e de si mesma. Essa lição, recebi dos grandes educadores que formularam as escolas em que estudei: Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro. Você aprende o amplo, a pensar, entender e a criar sua visão de mundo, depois vai fazer alguma coisa. Era uma educação maravilhosa, mas para pessoas privilegiadas. O Paulo Freire mostrou que todos merecem uma educação que ensine a pensar. Ou o país nunca será feliz.

Paulo Freire faria cem anos, dia destes. Andei relendo suas palavras, vendo o quanto ele continua vivo, necessário, o quanto honra nosso Brasil diante do mundo. O quanto é amado. E perigoso para sistemas totalitários, elitistas, o quanto é temido por pessoas e sistemas assim. Ele anunciou o cerne do dilema que vivemos hoje em plenitude: Todos temos uma ideologia, a questão é se ela é inclusiva ou excludente. Existem mais de 350 escolas com seu nome, pelo mundo. Seu livro, Pedagogia do oprimido, é a terceira obra mais citada em trabalhos de humanidades em todo o planeta. O que ele diz, ainda precisamos ouvir. Todas as homenagens a ele foram pequenas diante de o quanto ele nos ensinou a sermos um país justo, iluminado. E foram homenagens a todos os professores.

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