Por Desirée Ruas
Mãe, jornalista especialista em Educação Ambiental, coordenadora do Movimento Consciência e Consumo, de Belo Horizonte. Atua em causas como defesa da infância e combate ao consumismo infantil, leitura crítica da mídia, direitos e deveres do consumidor e ações socioambientais por uma vida mais saudável. www.conscienciaeconsumo.com.br . Texto originalmente publicado no site do Movimento Infância Livre do Consumo (http://milc.net.br/)
Enquanto o convite para acompanhar os jogos e torcer pelo Brasil torna-se cada vez mais intenso, a gente se pergunta: devemos tirar as crianças da sala ou o bombardeio das grandes marcas de cerveja — que reinam absolutas na televisão quando o assunto é futebol — é algo que não devemos nos preocupar? Afinal, é Copa do Mundo e o interesse é dar visibilidade às marcas que patrocinam as exibições esportivas. Vale lembrar que o poder dos patrocinadores é tão grande que a proibição da venda de bebida alcoólica dentro dos estádios brasileiros foi alterada especialmente para o evento. Enquanto a bola estiver rolando no campo, o incentivo ao consumo de cerveja vai se intensificar em grande escala nos meios de comunicação. No Brasil, a publicidade de cerveja sempre teve lugar de destaque e o produto desperta tanto desejo que poucos se incomodam com o bombardeio publicitário. É como se a bebida fosse um elemento básico na vida social das pessoas e sem ela impossível degustar de momentos alegres e descontraídos em festas, encontros, conversas entre amigos e almoços em família. Mas e quanto às crianças que, expostas à publicidade da cerveja, criam uma imagem positiva do produto desde a infância? Será que temos motivos para nos preocupar? Afinal, quem ganha e quem perde com o constante incentivo ao consumo de álcool e a exibição de comerciais de cerveja sem restrição de horário?
Nossas crianças estão continuamente expostas a diversos tipos de mensagens publicitárias. Desde a publicação da Resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Conanda, em 4 de abril de 2014, que proibiu a publicidade e a comunicação mercadológica dirigida à criança, a situação continua inalterada nos mais variados meios de comunicação para o descontentamento de todos aqueles que trabalham por uma infância livre de consumismo.
Mas para além da publicidade infantil abusiva, que se aproveita da deficiência de julgamento e experiência da criança, os comerciais feitos para o público adulto também têm sua influência sobre o público infantil e adolescente. Por meio da exposição à publicidade, em suas variadas formas, o comando “experimente este ou aquele produto” faz parte da vida das crianças desde os primeiros anos de vida. Preocupante constatar que nossas crianças são incentivadas a consumir produtos que não fazem bem à saúde. Mais grave ainda é pensar que elas estão mergulhadas em um ambiente que incentiva o consumo de cerveja, sem que nenhuma medida tenha sido tomada até hoje para reverter essa situação. Por meio da publicidade, elas passam a conhecer marcas, rótulos e slogans das bebidas e, continuamente, a mensagem se repete sempre com renovação de cenas e personagens, fazendo uso de cantoras de axé e jogadores de futebol, rostos bem familiares dos programas de televisão. Quando as crianças chegam à adolescência, a identificação com as mensagens torna-se ainda mais forte, com turmas de jovens promovendo festas, com mulheres com corpos à mostra, praias e bares cheios de gente bonita, e bom humor e rebeldia. Tudo que a turma com menos de 18 anos adora ver e fazer. Então, podemos achar que tais mensagens são de fato inofensivas? Como imaginar que a publicidade de cerveja não representa um incentivo ao consumo de álcool por crianças e adolescentes?
E o clima é de festa, alegria, entrosamento, descontração, paquera, beleza, lazer e diversão. Quem não quer fazer parte dessa turma? Todos esses elementos combinados, repetidos continuamente nos comercias veiculados em horários e programas que não são exclusivos para o público adulto, fazem com que crianças e adolescentes cresçam com uma imagem extremamente positiva do consumo da bebida. Afinal, só é mostrado o “lado bom” da cerveja, como faz toda publicidade.
Uma sociedade que vive mergulhada em conteúdos que estimulam o consumo perde parte de sua capacidade de fazer uma leitura crítica das mensagens que estão ao seu redor. A mensagem que nos orienta para o consumo não é informação verdadeira mas um estímulo para comprar que enaltece as vantagens e obviamente esconde os defeitos. As mensagens publicitárias têm o papel de simplesmente convencê-lo a comprar um produto ou serviço, consolidando estilos de vida e de pensamento. E onde vamos encontrar informação que contribua para a tomada de decisão e para escolhas com consciência? Quantas horas foram dedicadas à transmissão de programas e reportagens que expõem os riscos do consumo de álcool ou sua penetração nas faixas etárias mais jovens? E qual o volume de conteúdo promovendo a bebida, por meio de comerciais e merchandising, foi visto nos últimos dias na TV aberta? Quanto do dinheiro público é gasto com políticas de prevenção e combate aos problemas causados pelo álcool? E de que forma a indústria do álcool contribui com tais custos?
Como nossas crianças estão na sala quando são exibidos os comerciais de cerveja pela televisão, elas também estão sendo alvo de mensagens que não deveriam chegar até elas. Mas o que fazer se o Sistema de Classificação Indicativa, do Ministério da Justiça, que determina as faixas etárias recomendadas para novelas, filmes e programas televisivos, não se aplica à publicidade. Tampouco podemos nos valer da Lei 9294/1996, que proíbe a exibição de comerciais de bebidas alcoólicas antes das 21h. Por incrível que pareça, a cerveja e outras bebidas, como vinhos e espumantes, não são consideradas alcoólicas pelo texto da lei porque têm índice menor que 13 graus na escala Gay-Lussac. As cervejas, disponíveis em latas e garrafas cada vez maiores e adquiridas em grandes volumes nos pontos de venda, têm teor alcoólico que varia entre 2,5 e 5 graus. Então, o que dizer da influência de um produto que tem, por lei, seu consumo proibido para menores de 18 anos mas cujas mensagens são divulgadas também para esse público? Sem nenhum tipo de proteção legal, cabe a nós, pais e mães, questionarmos tal realidade e as consequências do bombardeio etílico cotidiano sobre todas as idades e que, infelizmente, tem o aval da sociedade, do governo e dos meios de comunicação.
Para saber mais:
– Conheça a campanha do Ministério Público do Estado de São Paulo “Cerveja também é Álcool”, com uma petição para que o Congresso Nacional inclua a publicidade de cerveja na Lei Federal 9.294/96, que regula o tema.
– O Ministério da Justiça fez uma campanha muito interessante para o carnaval: “Bebeu, perdeu” era o mote. A copa seria uma excelente oportunidade para repetir esta ofensiva. Conheça a campanha, clique aqui.