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As crianças e a felicidade: a foto e os de fora dela

Professora da Uerj analisa reportagem da revista Época.

Por Maria Inês de C. Delorme
Professora adjunta da UERJ, pós-doutorada pela Universidade Nova de Lisboa

Sobre a matéria Por que ela está tão feliz? Uma nova pesquisa revela o que deixa as crianças brasileiras alegres ou tristes”, escrita por Thais Lazzeri, divulgada na internet, revista Época em 25/5/2012.
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Esse artigo se destina à reflexão da matéria da revista Época que, embora mereça muitos aplausos pela publicação, junto à SBP e ao Datafolha, também incita à análise, ao debate e à formulação de algumas questões. E, nessa reflexão, confesso que questiono, às vezes, a condução da repórter e a linha do periódico em que trabalha, a pesquisa e, eventualmente, as duas coisas.

A primeira questão se refere a um anúncio, no lead da matéria, que pode desapontar o leitor, interessado, como eu, em ouvir “pela primeira vez”, o que sentem as crianças brasileiras. E ninguém melhor que elas próprias para contar o que as deixa felizes ou tristes”. Não pude perceber o que dizem e sentem as crianças nessa pesquisa como sendo ideias, opiniões e sentimentos expressos por elas, já que na reportagem da Época elas estão presentes, sem as suas vozes.

Há falas interessantes e competentes que sustentam a matéria e a pesquisa, que traz discursos importantes de acadêmicos e de profissionais sobre as crianças. Há, também, um discurso legal, que atribui e garante para elas os seus direitos, (o que é ) indispensável. Fazem-se presentes os discursos dos pais e suas expectativas acerca da vida presente e futura de seus filhos, o que  também é valioso. Porém, a fala das crianças, que têm sempre o que dizer sobre suas vidas, é imprescindível. Ou então, mudam-se o lead e o texto de apresentação da pesquisa.

Um segundo ponto para reflexão se refere à reconhecida dificuldade de fazer, não só no Brasil, pesquisas sobre crianças, mas com crianças. Essa é uma decisão metodológica usada em pesquisas qualitativas, em geral de cunho etnográfico, que não têm uma execução simples. Embora saiba que a pesquisa em questão não tenha essas característica, por ser quantitativa, penso que ela reforce um conceito antigo em que se dava maior peso ao que têm em comum ou seja, em aspectos passíveis de generalizações, em detrimento do que caracteriza cada uma delas como um ser único e diferente de todas as outras. Por que digo isso? Porque, as falas das famílias e a homogeneidade das imagens divulgadas pela Época na reportagem deixam fora da foto uma infinidade de crianças e de famílias brasileiras que se fazem presentes, nesse caso pela sua ausência, ficam “fora da foto.”

Ainda sobre a metodologia utilizada na pesquisa, como parte extremamente interessada, fui buscar informações sobre como foi feita a “escuta” das crianças, além de precisar conhecer os contextos em que elas aconteceram, o que também não foi apresentado na matéria e que poderia enriquecê-la, dado ao pioneirismo da pesquisa.

Há, também, alguns resultados que surpreendem, positivamente, como por exemplo, o fato de a renda, a escolaridade da família e o seu capital cultural – ou as “diferenças culturais” – não terem peso na suposta tristeza/alegria das crianças, à medida que vivem imersas num mundo que produz a nefasta cultura material da felicidade e que procura mantê-la e reproduzi-la. Todas as pessoas, dos nossos filhos aos nossos alunos, de alguma forma e em algum momento, relacionam desejos materiais à felicidade, mas a pesquisa mostra claramente que elas não desejam apenas comprar e ter. Melhor assim.

Sobre os encontros entre adultos e crianças pelo Skype, ou por meio de outros recursos que dependem da internet, julguei oportuno estabelecer uma relação entre os resultados anunciados na Época e os dados apresentados pelo CETIC.br, de que apenas 27% dos domicílios brasileiros a ela têm acesso (CGI.br, 2010), sendo apenas 6% na área rural. Desses 27% de domicílios, 90% são da classe A; 65% da B; 24% da C; e 3% das classes D-E; sendo que os critérios usados pelo IBGE para a definição dessas classes sociais se basearam na renda familiar: A1 = Renda familiar mensal R$ 14.550;  A2 = até  R$ 9.850; B1 = 5.350;  B2 = até R$ 2.950; C1 = até R$ 1.650; C2 = até R$ 1.100; D = até R$ 750; E = até R$ 410.

Nesse processo, mais uma vez, busco localizar crianças que estão “fora da foto“, embora falem em seu nome, já que elas são brasileiras como as outras. Cito como exemplo o contexto da pesquisa que desenvolvo, onde em cem crianças apenas quatro têm internet e, assim, nunca poderiam se conectar com seu pai, mãe ou avó pelo Skype. E esse paradoxo que reflete a presença/ausência de certas crianças, na minha opinião, se impõe porque não sabemos os critérios utilizados para selecionar as dez famílias entrevistadas na matéria. Assim, me permito supor que tenham sido ouvidas apenas famílias com nível socioeconômico e padrões étnicos parecidos com o dos leitores da Época. E, nesse caso, ficamos devendo alguma coisa às crianças, de novo.

Como terceira questão, venho expor aqui algumas experiências, junto com certos medos, apenas para ilustrar o desafio de aferir e de quantificar ideias, desejos e sentimentos infantis. Insisto, no reconhecimento da dificuldade para fazer esse tipo de levantamento com adultos e, ainda mais, com crianças, sobretudo se for dado o devido destaque aos aspectos éticos que precisam ser considerados quando se pesquisa com crianças. Vejamos o que dizem algumas delas, que integram o meu universo de pesquisa: “É chato ficar ali, junto com o meu pai, na hora da novela e ele nem fala nada. Se eu falar, ele briga. Eu queria ficar ali, perto dele, fazendo aquele joguinho do celular dele, aquela brincadeira de jogo, sabe? Mas ele não empresta. Por que ele não empresta? Ora, ele diz que não é pra criança, mas é. Não é pra adulto, eu acho.” (W.S., menino, 7 anos).  Há sonhos e desejos expressos por elas que são muito semelhantes entre si e outros muito diferentes, como, “querer  aprender a fazer um Orkut só para usar no celular. E aí eu vou ficar rica, muito rica.”, diz  K.A. (menina, 8 anos), que sequer tem internet banda larga em casa, embora “já tenha um computador”.  E, ainda sobre o celular, diz uma outra menina de 5 anos: “Eu queria ficar no cinema com a minha mãe o dia todo, ali no escurinho só vendo os Vingadores, mas o celular dela nem ia poder tocar, hora nenhuma, nem uma vezinha. Só ela e eu.” (G.S., menina.)

O que pretendo dizer com isso? Que, ao desejar saber o que as crianças pensam, quero dizer que elas precisam ser ouvidas com o rigor necessário que lhes assegure a expressão da sua própria voz com confiança, conforto — e até mesmo segundo certos parâmetros de proteção, em alguns casos, em respeito à vida delas, quanto à exposição de suas imagens, ideias e sentimentos. Nesse viés, considero o uso de uma ou outra pergunta aberta, a aplicação de questionários e o uso de “carinhas” como não sendo suficientes para conhecer o que pensam e sentem as crianças. Há modos de perguntar, com ou sem aplicações de questionários, que produzem determinadas respostas, que encapsulam e, às vezes, conduzem as vozes dos pesquisados, sejam crianças, sejam adultos. Vale destacar aqui que coloco essas questões em função dos objetivos da pesquisa, dos seus resultados  e do meu compromisso com as crianças que me cobra o respeito às suas vozes. Jamais desacreditei da lisura nem da competência do Datafolha, da Sociedade Brasileira de Pediatria, muito menos da competência da repórter. São questões para uma reflexão que convida à uma aproximação da Educação, com a Pediatria  e a Comunicação Social, pelo menos, nesse caso.

Uma penúltima questão, a quarta, remete ao que é estabelecido, na matéria como família. Cresce o número de crianças brasileiras que não têm família em que pai e mãe vivem juntos, que são parte de outros arranjos familiares, que funcionam também como seu esteio e segurança, mas com organizações internas muito diferentes e variadas, e estas, a meu ver, precisariam estar presentes nessa matéria. Por que não ouvir mães, pais e crianças, principalmente, que favorecessem a inclusão de alguns outros formatos de famílias igualmente legítimos?

E, como última questão para reflexão, gostaria de propor duas coisas. Uma delas, é que sejam feitas mais pesquisas, novas ou complementares à apresentada, por exemplo, mas que possam ser demandadas, planejadas e analisadas sob uma ótica interdisciplinar que envolva a Pediatria, a Pedagogia, a Sociologia da Infância, a Comunicação Social e tantas outras áreas para que, juntos, seja possível enfrentar questões de abrangência multidisciplinar, como essa. A segunda e última questão se refere ao papel da imprensa e à responsabilidade dos jornalistas-repórteres no tratamento das questões que remetem às crianças e à infância. Sobre isso, há uma tese de doutoramento disponível na internet  que buscou estudar a relação de crianças de 6 a 8 anos com as notícias da televisão. Essa tese não apresenta verdades fechadas nem pretende esgotar o assunto, mas, quem sabe, pode ser do interesse dos adultos conhecer o que as crianças dizem a respeito do que entendem como uma notícia.

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Rute Miriam Aalbuquerque
Rute Miriam Aalbuquerque
11 anos atrás

Brilhante, sucinta e tão necessários esclarecimentos e advertências.
Penso que não é mais possível avançar sem entrelaçar as diversas áreas do conhecimento. E gostaria de pegar carona em sua proposição:”… que sejam feitas mais pesquisas, novas ou complementares à apresentada, por exemplo, mas que possam ser demandadas, planejadas e analisadas sob uma ótica interdisciplinar que envolva a Pediatria, a Pedagogia, a Sociologia da Infância, a Comunicação Social e tantas outras áreas para que, juntos, …” e adensando-a, solicitar que o critério étnico componha com as pesquisas e suas categorias de análise. Ser negro ou negra, por exemplo, para além de outros pertencimentos étnicos, e, obviamente respeitando cada um deles, é um exercício cotidiano, árduo, denso e exige munição para combater o mito da democracia racial. Como crianças, seres ainda de pouca idade, são/estão instrumentalizadas para lidar com isto?
Também gostaria de mais detalhes sobre a tese citada, para poder lê-la.
Que prazer compartilhar das ideias expostas no artigo.Parabéns!

Marilene Rauber Ebone
Marilene Rauber Ebone
11 anos atrás

Muito interessante este artigo e os questionamentos feitos. As crianças das classes menos favorecidas, em diversos momentos,são esquecidas e desconsideradas suas opiniões.

Pâmela Saunders
11 anos atrás

Muito bom o artigo!
Gostaria de saber o título da tese de doutorado mencionada no último parágrafo do texto.

Regina de Assis
Regina de Assis
11 anos atrás

Brava, Inês !
Muito importante seu artigo/resposta à matéria e bastante pertinentes seus questionamentos.
O aligeiramento de análises , como as que você critica, têm prestado muito pouco esclarecimento e apoio às famílias e aos demais responsáveis por crianças brasileiras .
E , definitivamente , falar sobre elas , sobre o que sentem e desejam, sem deixar que se expressem é falha grave , especialmente para as milhares que ficaram ” fora da foto ” e que são a maioria , como conhecemos …

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