Por Ricardo Setti
Ex-diretor do Jornal do Brasil em SP, ex-editor da revista Veja, ex-editor-chefe do Estadão, ex-diretor de Redação de Playboy, ex-diretor da Editora Abril. Editou as 700 páginas das memórias políticas do Presidente Fernando Henrique Cardoso, “A Arte da Política – A História que Vivi”
Como é possível “despiorar” uma obra-prima literária, verbo que Afonso Borges, o autor de Tardes Brancas (Autêntica Editora, 2024), tomou emprestado ao ultra perfeccionista Otto Lara Resende para uma nova versão de seu Olhos de Carvão (2017)?
Pois Afonso, além de ser o maior divulgador do livro no Brasil, o cavaleiro andante do escritor brasileiro, generoso e onipresente, já produzira em Olhos contos com recursos estilísticos originalíssimos na literatura atual, tanto em relação a tempo-espaço, esboços de personagens – algumas figuras cinzeladas tal qual estátuas inacabadas, outras resumem-se a poucos traços como névoa levada pelo vento – e a uma linguagem enxuta até o extremo, como a demonstrar o quanto atingir o simples requer não apenas habilidade e técnica, mas aquele toque mágico a que chamamos talento.
Afonso é tão bom escritor como administrador do mais escasso tesouro que temos – o tempo. Tem há 13 anos colunas diárias no rádio, o Mondolivro. Abastece também todo santo dia, pelo WhatsApp, com material abundante e rico, um grupo privilegiado de gente conectada com a literatura – costumo brincar que equivale a um The New York Times de domingo por dia, porque os mais de 200 destinatários também contribuem. Mas o maior legado que ele constrói e mantém ativo desde 1986 é o magnífico Sempre um Papo, aquelas deliciosos debates com escritores seguidos de lançamento de livros, com público, transmitidos por TV e registrados em vídeo – um gigantesco patrimônio cultural que abrange cerca de 6.000 entrevistas.
Acha muito? Pois bem, ele também enveredou pela criação de festivais literários de primeira linha, todos, em cada edição, um sucesso – como o Fliaraxá, que estreou em 2012, e mais os FLIs de Itabira, Paracatu e Petrópolis.
Como é que um camarada desses encontra tempo para escrever?
E escrever a sério, pois escritores sérios têm seu universo literário particular, como ocorre com Afonso. No qual em frações de segundos o leitor pode ser conduzido do cemitério de Père Lachaise, em Paris, ou dos túneis da morte em Gaza, a criaturas angelicais na Capadócia, Turquia, ou a um enigma em Cartagena de Índias, na Colômbia, sem que o abandone uma sensação de familiaridade. Há brigas de pais, brigas de casais, amantes e putas, traição e fidelidade, peladas de rua, assaltos e atropelamentos, redações de jornais, inevitavelmente jornalistas e escritores, inevitavelmente a figura do livro. A sensibilidade de Afonso faz desabar sobre a dos leitores várias situações-limite, sobretudo de tristeza – como a da mãe que, no velório da filha, observa o machucado sem casca que ainda não cicatrizou no corpo da menina. Acho que não é preciso mais exemplos.
O universo literário de Afonso é um espaço emocional em que cabe muito confortavelmente um trecho oposto ao da menina morta, de um dos cinco poemas reunidos no livro, rescendendo a pura paz: “A manhã pousou lenta nas vidraças e a casa, sem magia, abriu seus quartos, bocejante”. Um espaço em que ipês floridos em maio podem remeter a torturas durante a ditadura, em que uma flor sobre uma lápide talvez seja o tardio reencontro com um velho amor. Nesse espaço cabem corredores – de hospitais, de prisões, de cemitérios –, escolas, casas de cidades do interior, igrejas. Em uma delas, a moça vê um vulto “de cócoras, braços ao redor das pernas, olhos de carvão” fixos nela. Pode significar tudo, inclusive o que Afonso esboça como sendo uma Idade Média no futuro. Assustadoramente próxima, como lerão.