Por Marcus Tavares
Do Observatório da Imprensa
Em outubro de 2005, o Ministério Público Federal e seis entidades da sociedade civil organizada moveram uma Ação Civil Pública contra a emissora Rede TV! por veicular o programa Tarde Quente, apresentado pelo humorista João Kleber.
Foram as seguintes instituições que entraram com a ação civil pública: Coletivo Intervozes; Ação Brotar pela Cidadania e Diversidade Sexual (ABCDS); Associação da Parada do Orgulho dos Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros de São Paulo; Associação de Incentivo à Educação e Saúde de São Paulo (AIESSP); Centro de Direitos Humanos (CDH); e Identidade – Grupo de Ação pela Cidadania Homossexual.
Na época, o programa encabeçava a lista de reclamações da campanha “Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania”, criada pela Câmara dos Deputados. A crítica que se fazia era em torno do quadro “Teste de Fidelidade”, em que maridos ou esposas assistiam, no palco, a um vídeo em que a fidelidade do parceiro era testada por atrizes e atores sedutores. De acordo com a ação, o quadro violava direitos humanos, exibia cenas de agressões entre os casais e trazia pitadas de discriminação contra homossexuais. As denúncias vinham sendo apuradas três anos antes e o Ministério Público tentava acordar um Termo de Ajustamento de Conduta com a Rede TV! para suspender a exibição das ‘pegadinhas’. Não houve resultados.
Inédita no Brasil, a ação pedia a cassação da concessão pública sob a responsabilidade Rede TV! e o pagamento de uma indenização à sociedade por dano moral coletivo no valor de R$ 20 milhões – 10% do faturamento bruto anual declarado pelo canal, que deveriam ser creditados para o Fundo de Defesa de Direitos Difusos, que financiava projetos de promoção dos direitos humanos. A ação pedia ainda a suspensão imediata do programa e requeria, como direito de resposta aos ofendidos, a exibição, no mesmo horário, durante 60 dias, de uma programação sobre direitos humanos, com custos arcados pela emissora.
Direitos humanos
O que parecia impossível, frente à realidade e ao lobby histórico e conhecido das emissoras comerciais de tevê, aconteceu: a liminar da juíza federal Rosana Ferri Vidor, da 2ª Vara Federal de São Paulo, foi favorável, suspendendo por 60 dias a veiculação do programa Tarde Quente, permitindo sua exibição apenas a partir do dia 5 de janeiro do ano subsequente e somente depois das 23h30.
Segundo a juíza, os quadros apresentados pelo humorista João Kleber destacavam atitudes claramente depreciativas, preconceituosas e deturpadas de estereótipos de minorias, tais como os homossexuais, idosos, mulheres, pessoas com deficiência física e crianças.
Eis alguns trechos do despacho/resolução da juíza:
“Não se trata de humor lúdico, mas visa alcançar o riso daquele que o assiste através do escárnio. Escárnio, no dicionário Aurélio, remete ao verbete “zombaria”, que tem como definição ‘a manifestação intencional, malévola, irônica ou maliciosa, por meio do riso, de palavras, atitudes ou gestos, com que se procura levar ao ridículo ou expor ao desdém ou menosprezo uma pessoa, instituição, coisa etc., e até os sentimentos.
“(…) Tal pedido não implica a interferência na liberdade de expressão da emissora ou dos produtores do referido programa, uma vez que as liberdades individuais devem ser exercidas por cada um de modo a não interferir na esfera de liberdade do outro. São como linhas paralelas, que devem seguir sem se atingirem. A partir do momento em que uma fere a outra, ou seja, que um indivíduo usa de sua liberdade de modo que interfira na esfera dos direitos dos outros, havendo provocação, o Estado juiz deve interferir.
“(…) Difere a interferência do Estado de modo a reconduzir a atuação de um indivíduo de volta à sua esfera de atividade que não agrida a sociedade, da censura, que é a atuação estatal que fere a liberdade do indivíduo que atua dentro de sua esfera, sem atingir a de outrem.
“(…) A reiteração da demonstração desse tipo de comportamento, em meio de comunicação de massa, cria, em quem assiste à banalização dessa atitude, além da convicção de que não existe um erro em agir-se dessa forma. Efetua ‘deseducação’ da sociedade. Tal não se pode admitir, ainda mais em horário em que milhões de crianças e adolescentes têm acesso a essas informações.
“(…) As emissoras de televisão, ao se utilizarem de concessão estatal para o exercício de suas atividades, devem ter como vetor de orientação na consecução de seus objetivos, não só o lucro fácil, mas também a consciência de formação educacional, moral e cívica da população que a assiste.”
O que aconteceu? A emissora não acatou a decisão judicial por duas vezes consecutivas. Resultado: a Justiça Federal e a Anatel suspenderem de imediato as transmissões. Cortaram o sinal. Pressionada pelos anunciantes que saíram prejudicados pelo fato de seus comerciais não terem sido veiculados, a Rede TV! acabou assinando um acordo com o Ministério Público e as instituições, se comprometendo a veicular, durante 30 dias úteis – de 5 de dezembro a 13 de janeiro de 2006 – uma série de programas sobre direitos humanos, que seria produzida pelas seis entidades que entraram com a Ação Civil, caracterizando o direito de resposta daqueles que foram violados e desrespeitados.
A emissora teve de destinar R$ 200 mil para financiar tal produção e depositar uma multa de R$ 400 mil para o Fundo de Defesa de Direitos Difusos. A Rede TV! também assegurou não mais ofender as pessoas nem violar os direitos humanos em sua programação e atender à classificação indicativa do Ministério da Justiça. Em contrapartida, a ação principal, que pedia a cassação da emissora e o pagamento de danos morais, foi retirada.
Tudo com dantes
Na história da TV brasileira, foi, se não estou enganado, a primeira vez que um canal de TV aberta teve seu sinal retirado do ar por determinação da Justiça. A atuação da sociedade também foi inédita no sentido de unir esforços em torno de uma reivindicação que tinha como alvo a programação da TV aberta. Um bom exemplo de participação cidadã.
Mas passados sete anos, parece que todo este fato não existiu. Ficou para trás. Foi com tamanha surpresa que acompanhei, no inicio de março, as chamadas da programação da Rede TV! anunciando a volta do quadro “Teste de Fidelidade”, agora, como programa. O mesmo apresentador também voltou. João Kleber foi a quase todos os programas da emissora, falando do “grande sucesso”, ressaltando que era um “programa revolucionário para a época” e que, nos dias de hoje, continuaria ‘líder de audiência’.
Há três semanas no ar – é exibido de sábado para domingo, às 0h30 – o programa registrou média de três pontos no Ibope, ocupando a vice-liderança no horário. Para a emissora, esta é prova do tal “sucesso”, de que o povo curte “polêmica” – expressão utilizada pela chamada do canal. Para quem sabe que a TV aberta está praticamente em 100% dos domicílios brasileiros e que a TV fechada ainda é privilégio de poucos (a previsão é de que até o final deste ano o número de assinaturas chegue aos poucos 16 milhões), o sucesso, às vezes, é pura e simplesmente falta de opção.
A lógica da atual versão do Teste de Fidelidade é a mesma da antiga: plateia, cenário e roteiro, com suspense, trilha musical, sedução, exibição, sensualidade, texto sensacionalista e muita, muita briga e xingamento no palco… Nada mudou. Está certo que o programa é exibido às 0h30, num horário bem avançado. Mas o que garante que ele não possa vir a ser apresentado mais cedo? O programa, de acordo com a classificação indicativa, não é recomendado apenas para menores de 14 anos. Portanto, pode vir a ser exibido a partir das 21 horas, sem nenhum questionamento.
Feito histórico
Frente aos reality shows brasileiros da TV aberta, qual é o problema do Teste de Fidelidade? Você, com certeza, deve fazer esta pergunta. Afinal, todos têm, em sua estrutura, a polêmica, a baixaria, o sexo, o barraco e estão aí, não é mesmo? Não defendo a censura e ou uma sanha regulatória do conteúdo da programação brasileira de tevê. Mas defendo a construção da participação cidadã neste processo, neste diálogo. Defendo a escuta da sociedade, que precisa de espaços qualificados para o debate dessas questões.
Sem esses espaços e debates, muitas vezes a sociedade não consegue enxergar problemas no conteúdo que a radiodifusão (que são concessões públicas) lhe oferece. Há um convencimento geral, embrulhado com magia e publicidade pelas emissoras, de que tudo o que é apresentado/exibido pela TV é normal, de boa qualidade e gratuito. Neste sentido, o que a sociedade poderia reivindicar? Vende-se, e em certos casos é verdade, que a mídia é parceria e muitas vezes parte da solução para muitos problemas que a sociedade enfrenta. Como poderia então a sociedade criticá-la? No máximo, o que lhe cabe, avisam os canais, é mudar de canal.
Mas no caso aqui em questão estamos diante de um fato concreto em que a sociedade conseguiu uma façanha, conseguiu se posicionar, fazer valer a sua voz, contando com o apoio legal da Justiça. Valeu a pena? Sim. Este feito histórico, que muitos não querem trazer à tona ou simplesmente esqueceram, destaca e reitera o quanto a sociedade pode e deve fazer valer seus princípios e anseios. Pode e deve reivindicar. Infelizmente, a volta do Teste de Fidelidade caracteriza uma profunda falta de criatividade, inovação, ética e respeito da emissora. Entre a falta de memória e a falta de ética, eis o Teste de Fidelidade.