Por Mariana Amado Costa
Escritora
Dentre as distrações salvadoras durante a pandemia, comecei, por sugestão de tios biólogos queridos, a utilizar um site/aplicativo chamado INaturalist — INat para os iniciados. Trata-se de um sistema de registro de observações de seres vivos, por fotos, vídeos e sons, e de busca pela classificação taxonômica de cada uma delas, que acontece coletivamente.
É possível organizar projetos sobre temas tão amplos como Biodiversidade no Brasil, ou tão específicos como Lepidóptera da Serra do Japi. Vários grupos de pesquisa utilizam dados coletados pela comunidade do INat. Há também o projeto Criacionismo Vivo, no qual “os criacionistas podem expressar sua admiração pela complexidade da vida criada por Deus”, que, felizmente, conta com apenas dois participantes. Mas bizarrices como essa são em quantidade insignificante.
A primeira coisa que quis estudar para valer foi biologia. Nada a ver com as fantasias de criança sobre o que eu queria “ser” quando crescesse, um grande rol, a começar por bailarina, astronauta, filha de santo e chefe de torcida do Flamengo. Sempre tive grande amor por plantas e bichos, e um imenso prazer e curiosidade por tudo o que é da natureza. Andar no mato, por horas e horas, ouvindo, cheirando, tocando e contemplando, é um dos meus programas preferidos, que faço com reverência e intimidade.
Estou no meio da leitura de um clássico da ficção chamado Um estranho numa terra estranha, e acho que essa foi a influência para querer brincar, com o título deste artigo, com o Eu, robô, do Asimov. No Estranho não se trata de robô, mas de um filho de humanos criado em Marte, por marcianos. No ponto em que estou, parece que vai passar a rolar muito sexo tântrico, mas até agora o que me interessou foi sobretudo uma questão de possibilidades de percepção, pensamento, e mesmo fruição do tempo.
Lembro sempre do livro L’enfant sauvage, que conta três estórias mais ou menos bem documentadas de crianças selvagens: as irmãs lobas Amala e Kamala, o pobre Kaspar Hausen e o jovem francês Victor d’Aveyron, sobre o qual Truffaut fez um filme. Victor foi encontrado em estado selvagem e levado à “civilização”.
Segundo relatos do Dr. Jean Itard, que cuidou de Victor, o menino restava indiferente, sem se virar, ao som de um tiro disparado logo atrás dele. Por outro lado, identificava uma noz sendo quebrada do outro lado do instituto de surdos, onde morava, e corria para comê-la. Um de seus maiores prazeres era correr nu pela neve, e era capaz de tirar batatas da água fervente com as mãos, sem se queimar.
Itard tinha uma questão com o Dr. Pinel, que examinou Victor e diagnosticou que sofria de idiotia, enquanto o médico de surdos atribuia suas limitações à falta de convivência com outros humanos e, com isso, ao não desenvolvimento da linguagem. Faço um parêntesis para contar que, quando eu era pequena, minha mãe trabalhou por alguns meses no hospital psiquiátrico Philippe Pinel. Mimita, minha babá, me levava de ônibus para a escola e conta que eu identificava o Pinel e gritava, apontando, “mamãe tá ali” e ela, constrangidíssima, explicava para os passageiros em volta que “a mãe dela é doutora”. O mais interessante, para mim, é o fato de que conseguia identificar ruas e prédios na paisagem urbana, para o que sofro de grande incapacidade.
Sobre Victor, não me interessam tanto suas limitações quanto suas extraordinárias capacidades. Mostra que nossa relação com o mundo, mesmo a sensorial, tem infinitas possibilidades. A neurociência fala do quanto o cérebro é inexplorado.
Entretanto, preferimos acumular próteses e apêndices, através dos quais parece que ganhamos superpoderes, mas, no fundo, atrofiam e embotam nossa potência de ser. Eles têm memória espetacular, de modo que não precisamos mais lembrar, têm capacidade de processar informações em tempo brevíssimo, de modo que nossa necessidade de análise também é delegada. Alguns abrem mão até de pensar, e acabam se tornando bolsonaristas, existindo por mera adesão ou rejeição das opções, sempre binárias, que se lhes dão. Mas as inteligências artificiais não sonham — ou será que sonham com ovelhas elétricas? Acho mais provável que contem bitcoins — e voltamos assim aos clássicos da ficção
Não se trata de tecnofobia, mas de desejo de liberdade. Ouvi de uma médica oftalmologista que aquelas pessoas que já nasceram entre tablets e smartphones são de uma geração míope. Porque a maior parte do tempo olham para perto, já não conseguem distinguir bem o que veem ao longe. Pior, talvez não lhes importe olhar para longe. Se pudéssemos, como o Homem de Marte, parar o tempo para apreciar cada um que conhecemos e cada experiência por que passamos e, assim, torná-los, em sua preciosa individualidade, parte indistinta de nós, talvez fôssemos muito mais poderosos. No poder que é amar.