As imagens que nunca devíamos ter visto

Por Joana Amaral Cardoso
Do Jornal Público PT

Há um vínculo qualquer entre a fotografia da criança que corre, corpo franzino queimado pelo napalm, no Vietnã, de 1972, e a imagem de uma Paris Hilton chorosa a caminho da prisão. Há um vínculo qualquer entre as imagens de um linchamento no final do século XIX nos EUA e os instantâneos digitais de soldados americanos montados em presos iraquianos em Abu Ghraib. Há, decididamente, um vínculo entre as imagens de vigilância dos aviões U2 que desencadearam a crise dos mísseis de Cuba na Baía dos Porcos e o programa de apanhados “Candid Camera”. No primeiro caso, o vínculo é o fotógrafo, Nick Ut. No segundo, o vínculo é o propósito: a imagem, tal como as vítimas do ato, é um troféu, o símbolo de uma conquista. No terceiro, é tudo uma questão de vigilância.

“Exposed – Voyeurism, Surveillance & the Camera” é o nome da exposição que está em cartaz na Tate Modern, em Londres, até 3 de outubro. São 250 imagens que varrem a história da vigilância e do voyeurismo do século XIX ao século XXI.

É uma sequência de imagens voraz, uma experiência que mistura o prazer com o desconforto de ver coisas que nunca deveriam ter sido vistas. Há as imagens de bisbilhotice, as titilação erótica, as de projeto, os murros no estômago. As imagens trespassam. As imagens anestesiam.

Ver “Exposed” é por vezes difícil, pelo menos sem anestesia. Faz-nos pensar, como explica o comissário britânico da exposição, Simon Baker, na moral do espectador, na erosão da privacidade, na inversão do público e do privado na era pós-Habermas e pós-McLuhan, a era do sr. Facebook. Que nos diz que o mundo é melhor se partilharmos tudo: um mundo de paredes transparentes e fotografias para todos.

Ao telefone, Simon Baker admite que sim, que há elementos desconfortáveis na mostra que marca a sua estreia como comissário de fotografia da Tate. Dá como exemplo “The Park”, de Kohei Yoshiyuki, uma série de fotografias noturnas de casais que escolhiam os parques de Tóquio para fazer sexo rodeados, com ou sem o seu conhecimento, de público. “Nos anos 70, no Japão, eram mostradas no escuro. Davam-nos uma lanterna e encontrávamos assim as imagens, de uma forma muito teatral. Há difíceis questões éticas, e mesmo legais, suscitadas por este material”, diz.

Sexo e violência – Mas não é só o sexo, nem é só a violência de um homem esborrachado no chão. É a maneira como as vemos. “Habituamos a ver imagens de violência e sexo, mas acho que não nos habituamos a pensar muito sobre elas”, diz-nos Sandra Phillips, a curadora da exposição. Sobretudo, não nos habituamos a questionar a nossa participação, até sermos confrontados com imagens como as de Susan Meiselas, que fotografa o público de um espetáculo de “striptease” e não as próprias “strippers”. Meiselas, sublinha a curadora, procura ultrapassar “o fetichismo para pensar em quem está a olhar, como está a olhar e o que significa olhar”. “Ela nos faz questionar a nossa participação naquele processo”, enfatiza. “Ou seja, não somos nós no retrato. Mas somos nós como espectadores. “Talvez seja por isso que a exposição faz as pessoas sentirem-se desconfortáveis”.

A cronologia que abre as portas da exposição nos diz que tudo está ligado. O panóptico de Bentham e os “Apanhados” de Joaquim Letria. O YouTube e o Google Earth. Orwell, claro. A presença do olhar voyeurista é uma herança cultural desde a Bíblia. Como sociedade, sempre fomos voyeurs – nos “boudoirs”, nas cavernas, nos primeiros filmes pornográficos criados logo após a invenção da câmara de cinema.

Ao levar o nosso olhar, ao longo de 13 salas, de meados do século XIX aos dias de hoje, “Exposed” nos coloca perante o paradoxo original da fotografia: era inevitável que esta arte servisse para estes fins, certo? “Penso que muita fotografia, talvez até o próprio meio, é na verdade uma zona cinzenta, sem moralidade, apesar de presumirmos que diz a verdade”, aponta Sandra Phillips.

“Desde muito cedo a fotografia foi usada para produzir imagens mais pesadas – controle estatal, pornografia, ciência, tipificação racial. Assim que se tornou barata, foi usada para [partilhar] quantidades maciças de pornografia. Algo que tem este potencial de massas pode facilmente atingir o mínimo denominador comum”, corrobora o comissário da Tate Modern.

Cincos áreas temáticas – As imagens de “Exposed” estão organizadas em cinco áreas: fotografia de rua, imagens sexuais, perseguição de celebridades, fotos de morte e violência, vigilância. Conjugamos o verbo fotografar no contexto “Celebrity & the Public Gaze”: eu disparo; tu encolhes; ele foge; nós espreitamos, vós julgais, eles veem. Nada mais evidente do que numa situação paparazzi: o caçador e a presa. A imagem de Jacqueline Onassis a correr pelo Central Park, perseguida por Ron Galella, paparazzo obcecado que acabou por ser obrigado judicialmente a deixar a viúva de Kennedy em paz.

“A fome humana de ver o proibido não mudou [desde os tempos bíblicos]. As tecnologias que o facilitam sim”, escreve Sandra Phillips. “Olhamos para sexo e morte com a mesma curiosidade bisbilhoteira, sabendo que outrora foram visões privilegiadas. Fizemos toda uma cultura de celebridade [que começa, em termos fotográficos, no início do século XX] evoluir em torno da ambivalência entre o público e o privado.”

O catálogo de “Exposed” acrescenta: “A fotografia inventou a cultura de celebridades moderna”, em que o público e o privado se misturam para construir uma terra de ninguém ambígua em que Angelina Jolie – glamorosa, aborrecidíssima, zangada, feliz, só, acompanhada – está sempre em fuga.  Hoje, toda a gente tira fotografias, mas nem todos são fotógrafos”.

“Os fotógrafos sempre se distinguiram da massa, mesmo desde o século XIX. Não é fácil tirar uma boa fotografia, é fácil tirar uma fotografia. A multiplicação de aparelhos pode aumentar o número de imagens tiradas aleatoriamente, mas não vai expandir a fotografia como prática”, reflete Baker.

O que precisamos ver? – “É uma discussão interessante nesta era das notícias 24 horas – o que precisamos ver? O que é que nos deve ser mostrado? Esta manhã ouvi uma notícia interessante: um dos problemas da mancha de petróleo [no golfo do México] é não haver imagens suficientes do petróleo [risos]. Fugas muito menores geraram um impacto visual muito maior. Certos eventos parecem desaparecer quando não são acompanhados por imagens”, rememora Baker.


– Uma história de vigilância …

1785 – Jeremy Bentham cunha o Panóptico, o dispositivo prisional em que o observado não sabe de onde é visto pelo observador

1942 – É instalado,  na Alemanha, o 1º sistema  de CCTV [closed-circuit television]

1948 – O programa de “apanhados” “Candid  Camera” estreia nos EUA

1949 – George Orwell  publica o romance distópico “1984”

1954 – Estreia “Janela Indiscreta”, de Alfred  Hitchcock

1960 – Federico Fellini  cunha o termo “paparazzi”  em “La Dolce Vita”

1962 – Imagens de  vigilância captadas por aviões U2 desencadeiam a crise  de mísseis de Cuba

1963 – Abraham Zapruder filma  o assassinato de John F. Kennedy

1973 – Um dos primeiros exemplos de “reality tv”,  “An American Family”,  estreia nos EUA


– Uma história de voyeurismo …

1990 – A Guerra do Golfo inaugura o ciclo noticioso  de 24 horas

1995 – Timothy McVeigh, o bombista de Oklahoma,  é identificado graças a imagens de CCTV

1997 – Diana morre num acidente de viação quando era perseguida por paparazzi em Paris

1999 – Estreia na Holanda  o primeiro “Big Brother”

2001 – Na sequência dos atentados de 11 de Setembro, entra em vigor nos EUA o Patriot Act, que reduz as restrições à vigilância dos cidadãos pelas forças de segurança

2004 – Fotos de soldados  de Abu Ghraib tornam-se  os “souvenirs” da guerra  no Iraque

2005 – O YouTube é lançado
2007 – É lançada a opção  Street View no Google  Earth

2008 – É criada a  câmara Thru Vision,  que filma  através de tecidos e paredes

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Vicente de Percia
14 anos atrás

Uma temática importante que envolve múltiplos canais da observação e pesquisa. Como crítico abordei o tema do voeyrismos através da minha fotografia no final da década de 90 em Paris, França

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