Por Washington Araújo
Mestre em Comunicação Pela UNB e escritor. Criador do blog Cidadão do Mundo
O que fazer num dia sem computador? Existe um mundo de coisas contido nesta pergunta. Primeiro, e antes de tudo, se trata de um dia sem cliques. Sem Google, sem Reuters, sem BBC de Londres, sem Wikipédia, sem Gmail, sem Kotscho, sem UOL, sem YouTube, sem Josias, sem Word, sem Photoshop, sem copy e paste, sem zoom, sem abrir nada, sem fechar nada, sem salvar nada. Sem mensagem para Luiz Egypto [editor do site Observatório da Imprensa]. Sem digitar nada. Sem pesquisar no Houaiss, no Aurélio. Sem acessar CartaCapital. Sem queimar disco, sem usar este Nero que homenageia aquel´outro que, num dia enfadonho, tocou fogo em Roma. E, no meu caso, sem atualizar o blog Cidadão do Mundo. E sem canibalizar pensamentos completos a fim de contê-los nas cercanias farpadas do Twitter.
E vejo que tantas são as coisas que faço com o computador ligado. E são “coisas” tão rotineiras que, somente ao pensar em um dia sem computador, me dou conta do muito que é minha interação, minuto a minuto, hora a hora, com o computador. Ficar um dia sem computador é como ficar um dia sem enxergar ou sem comer, ou sem ouvir, ou sem pensar? O mundo que vejo é aquele que diz presente mediado por um monitor de 24 polegadas. O que cabe no monitor é do tamanho do mundo, vasto mundo, que vejo. Mas será mesmo este o mundo em que desejo viver?
Vocábulos dicionarizados
E, no entanto, reza a lenda que medos, persas e fenícios nasciam, cresciam e morriam sem ao menos fazer uso de computador. Estes povos não abriam programas, percorriam livros. Não salvavam documentos, acessavam memórias. Não digitavam documentos, escreviam mensagens. Não clicavam na tecla “enviar” para que as notícias viajassem o mundo, deslocavam-se a agências dos Correios, escolhiam o selo, lambuzavam a goma arábica, observavam o envelope enrugar, criar ondulações, pagavam e saíam felizes da vida por saberem que a mensagem já estava “a caminho”. A lenda informa também que descendentes de gregos e romanos não sabiam o que seria passar um par de horas por dia interagindo com amigos no Facebook e no Orkut, adicionando fotografias num e noutro, apagando mensagens cheias de emoticons, recebendo cutucadas virtuais, esboçando sorrisos, devolvendo cutucada virtual e aferindo quem está online.
O tempo passou, testemunhou as revoluções científicas de Thomas Kuhn e desaguou em nossos dias. Eu que era tão proficiente em inglês, que sabia muito bem afirmar the book is on the table e me descubro hoje executando dezenas de rotinas no idioma do bardo Shakespeare. Estranhando o fato que o português e tantas outras línguas eram simplesmente marginalizadas na linguagem dos que interagem com computadores fui ao Aurélio. Para minha surpresa constatei que já se encontram dicionarizados vocábulos como deletar, escanear, hardware, software, site, home page, online. E se antes marcava com alguns amigos uma tarde de vôlei, uma pelada, uma partida de xadrez, hoje assisto o campeonato de vôlei, a pelada e a partida de xadrez no próprio computador. O xadrez perdeu terreno e o barato mesmo é jogar pôquer online.
O mundo virtual é muito real
Velhos tempos, belos dias. Hoje não perco tempo marcando encontros, ligo o computador e confiro quem está online. Para uns, fico invisível, para outros, revelo-me de corpo inteiro, com direito a imagem e a voz. Encontro todo mundo ao mesmo tempo e a qualquer momento. O bar da esquina, o encontro na praça ou no shopping foi substituído sem dó nem piedade por encontros virtuais: você fala de lá que falo de cá, ri de lá que rio de cá. E se o monitor não é dos melhores nem consigo mais distinguir o brilho dos olhos, o sorriso no canto da boca, o ar de cabeça nas nuvens que tantos amigos meus, apesar dos anos, ainda conservam como característica mais gritante.
Antes, ouvir a fala presidencial era uma espécie de acontecimento. Havia toda a tal da liturgia do cargo. E isso acontecia em momentos especiais, dentre estes na noite do 7 de setembro. E tudo era visto através daquela TV de válvula, marca “ABC – A voz de ouro”, com a imagem subindo continuamente na vertical ou teimando em aparecer na diagonal. Hoje esbarro com a fala presidencial do Lula falando diretamente da Chechênia, Davos, Tel Aviv, Santiago de Cuba e do Chile. É só gastar alguns breves minutos escolhendo qual filtro usar, o do Universo Online ou o do Terra, da BBC ou da Reuters…
Chefes de Estado eram uma espécie de semidivindade, mais que humanos, menos que deuses, jamais se envolviam nisso que chamamos de gafes. Não existia CQC nem Pânico na TV. Hoje, o que mais tem é coleção de gafes presidenciais, tombos do Caetano Veloso no Rio e em São Paulo, em Salvador e em Santo Amaro da Purificação, áudios do Boris Casoy criticando simpáticos lixeiros em comercial de Ano Novo. É só procurar no YouTube. E ainda escolher quem deve estar passando por maus momentos na cena internacional, associando substantivo e nome próprio, por exemplo: Gafes Lula/ Gafes FHC/ Gafes Berlusconi/ Gafes Obama/ Gafes Sarkozy/ Gafes Clinton/ Gafes Kirchner.
Milton Nascimento, que gravou os ótimos álbuns Clube da Esquina I e II, provavelmente gravaria agora Clube Cidadania Mundial I e II. E existem opções demais para se usar o tempo e espectador de menos. Explico. O computador nos franqueia o acesso a tal multiplicidade de programas e assuntos que perdemos mais tempo vendo o que existe disponível do que indo a fundo num ou noutro programa. Se temos uma queda por arte na Renascença, com meia dúzia de cliques adentramos as galerias virtuais do Museu do Vaticano, de Florença, de Veneza, de Roma. Se Picasso nos faz a cabeça, o negócio é encontrar o trajeto que nos leva ao site virtual do Museu Reina Sofía, em Madri. Neste, encontramos nada menos que Guernica.
O balão de oxigênio, símbolo da manutenção da vida em nossa memória que vara séculos, poderia ser substituída pela energia que mantém ligado o computador. Se há um `apaguinho´, a falta de energia por breves minutos, somos imediatamente desconectados do mundo virtual. E esse mundo é mais real que virtual para extensas legiões de contemporâneos nossos.
“Seja lá como for…”
Sei que existe o Dia Mundial Contra o Tabagismo e também o Dia Mundial Sem Uso de Carro. Mas desconheço a existência de um Dia Mundial Sem Computador. Considero válido passar por essa experiência. Sem cigarro, conseguimos passar muito bem. É inegável. Sem a avalancha de carros transtornando a paisagem urbana (e fazendo aflorar nossas neuroses mais profundas), também conseguimos conceber vida possível. E… sem computador?
Lembro da criança nascida e criada em prédio de apartamentos. Em suas primeiras férias à cidade de interior onde nasceram seus pais, deparou com uma galinha e qual não foi seu encantamento em anunciar à mãe que acabara de ver uma… knorr! Conseguiríamos apreciar o canto dos pássaros, emitido pelos emplumados ou só seríamos receptivos a este mister se o canto tivesse como origem a pequena caixa de som que fica ao lado do computador?
Saberíamos passar um dia sem teclar nada? Bateria o desespero humano com a força dos tsunamis da alma? Ou, então, seríamos tragados pelos versos da canção: “E assim, seja lá como for/ Vai ter fim a infinita aflição/ E o mundo vai ver uma flor/ Brotar do impossível chão”?
Matrix é aqui.