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Sonho, morte e compaixão, num país de maricas

Por Mariana Amado Costa – 20 de novembro de 2020.

Sempre tive sonhos vívidos e intensos. Nos últimos anos, porém, com a rotina de trabalho, despertador fazendo pular da cama cedo, sem tempo de espreguiçar o corpo e a cabeça, a lembrança deles foi se tornando cada vez mais rara. Agora, com a pandemia e a reclusão que vem dela, a memória dos sonhos tem voltado com força.

Desde o tigre fêmea que nadava na piscina do Sesc Pompéia dentro do meu olho, semana passada, tenho sonhado com muita gente reunida, inclusive pessoas já mortas, literalmente ou simbolicamente. Sinto falta de um analista para me ajudar a entender. Mas tenho papel e lápis à mão. Na real, menos romântico e mais prático, tenho um tablet com teclado acoplado (ops, acho que inventei um trava-língua!).

Procuro pensar o que, na véspera, pode ter influenciado, coisas prosaicas, como uma música que ouvi, uma imagem, um copo que quebrou. Ontem, logo antes de dormir, estava lendo jornais online — coisa altamente temerária, aliás, por potencialmente causadora de pesadelos — e a última notícia contava que o Trump tinha quase admitido a possibilidade de não ser reeleito. A foto que ilustrava a matéria mostrava o presidente americano com os cabelos brancos. Ocorreu-me que assim, sem aquela pintura laranja que o faz parecer uma lagosta ensandecida, abstraindo o personagem e vendo apenas a imagem do retrato, a aparência era de uma pessoa normal.

Alguns fatos históricos tornam inesquecíveis momentos mundanos da nossa vida, como a roupa usada no dia que o homem pisou na lua, ou o local em que se estava  durante o ataque às torres gêmeas, para citar acontecimentos marcantes relacionados aos Estados Unidos. Pois eu nunca vou esquecer de quando soube que o Trump havia vencido as eleições americanas de 2016. Chorei como um bezerro desmamado — já ouvi os mugidos de bezerros apartados das mães para o desmame, por isso uso essa figura de linguagem não de forma reles, mas com todo o sofrimento que carrega.

Não lembro se chorei quando tive certeza da eleição do Bolsonaro. Não significa que não tenha chorado, é provável que tenha. Só que na hora foi irrelevante, estava passando a noite no hospital, acompanhando uma pessoa amada que estava doente, em estado terminal, com a morte e o sofrimento muito mais palpáveis ao meu lado, fisicamente e emocionalmente. A verdade é que desde muito antes, para mim, Bozo estava relacionado à morte e, muito pior, à tortura.

Sim, porque a morte nem sempre é má, pode ser bem vinda, quando acaba ou muda um estado de coisas ruins. Na leitura do tarô, por exemplo, a morte pode representar recomeço e ser uma carta de esperança. Sem falar que tanta gente, religiosa ou não, crê em outra existência (ou múltiplas) depois da morte. Às vezes lamento não estar entre esses.

A tortura, por sua vez, violenta a vida de forma muito pior do que a morte, pois além da dor, do sofrimento, do desespero, da humilhação, da solidão, a tortura é a negação da dignidade, da humanidade. Lembro bem de onde estava em outro momento horroroso, durante a votação da admissibilidade do processo de impeachment da presidente Dilma. Naquela noite, em que um golpe se consumou no próprio Parlamento, estava lá, não no Plenário, mas na torre da Câmara (a mais à direita para quem olha de frente o Congresso Nacional). Acompanhei todos os votos, um a um, cada voto ‘sim’ carregado, simbolicamente, de morte, e o mais odioso de todos, exultando um torturador.

Esta semana, pela enésima vez, o bandido que enunciou aquele voto e foi premiado com a Presidência da República por uma sociedade profundamente dividida e cheia de ódio (em vez de perder o mandato de deputado e ser, em seguida, julgado e condenado por incitação à violência), desonrou nosso país com a defesa de posições obscenas. Dessa vez, conseguiu a proeza de, além de demonstrar desprezo pelo sofrimento do povo — o que já se tornou corriqueiro —, ainda acenar com idéias de guerra.

Mais uma vez, rimos do absurdo que seria uma guerra, com a impotência brasileira diante do poderio bélico americano. O argumento de que a pandemia não é tão grave porque “todo mundo vai morrer um dia, tá ok?” é tão primário e já foi tão debatido que nem chegou a causar pruridos. Ri, como todo mundo, das árvores do Central Park pintadas de branco até a metade, depois da conquista pelo nosso exército. Mas não tem graça! Como podemos, pessoas e instituições, aceitar de braços cruzados o autoritarismo genocida que se instala no Brasil, à luz do dia, escancarado?

Resolvi ler na íntegra o discurso do “país de maricas”, para escrever sobre as afrontas aos princípios fundamentais da Constituição, como a solução pacífica dos conflitos e a autodeterminação dos povos, entre tantos, a começar pela dignidade da pessoa humana, e aos direitos e garantias fundamentais. Acontece que cheguei a ver a transcrição da fala mas, quando procurei para baixar o arquivo, não encontrei mais.

Resolvi, então, degravar eu mesma. Durante longas horas, ouvi incontáveis vezes trechos daquele “desabafo”, como o próprio orador definiu no final. Os 20 minutos resultaram em horas de trabalho por uma série de dificuldades: a dicção, a pobreza vocabular, com a preferência por monossílabos como “né” e “pô”, a falta de concordância, os muitos outros erros semânticos e sintáticos, a descontinuidade das ideias na sucessão das frases. Queria ser precisa, por isso, a cada dúvida, voltava e ouvia de novo, de novo e de novo. Foi penoso.

Ao final, já não tinha a motivação para cotejar aquilo com o texto constitucional. A repetição do áudio causou-me grande impressão. Esperava que a tônica fosse a bravata e a ignorância. Estavam lá, sem nenhuma dúvida, mas o que me pareceu mais significativo foi a insegurança, o desespero, o abuso do apelo aos ministros e amigos para corroborar suas afirmações, muleta bem comum em pronunciamentos.

Fui deitar bem cansada e vi a tal fotografia de que falei, de um Trump grisalho e abatido. Foi uma noite agitada, com sonhos povoados por muita gente. Acordei surpresa com a quantidade de mortos que estavam lá: meu avô já velhinho e com dificuldade de andar, que também era, no mesmo personagem, um primo querido, morto há muitos anos.

Em outro sonho, minha vó Nazoca guardava lugar para a nossa grande família, juntando mesinhas num bar lotado, num espaço aberto, como uma praça de alimentação. No meio da multidão, um ex-namorado com quem ainda estava (no sonho) se interessava por outra mulher, o que me dava grande alívio, pensando, em italiano hiperbólico, o quanto já estava de saco cheio, que na minha vida ele não existia mais. Depois ia ao banheiro do prédio (não sei se era um shopping, mas tinha enormes escadas rolantes), onde vi um homem, figura pública que sabia querida, mesmo sem reconhecer. Ficava surpresa em vê-lo vivo. Quando acordei, relembrei a imagem e era, claramente, o Chico Mendes.

Antes de tudo isso, do bar com a vovó, do término do namoro, do banheiro, fiquei um tempo sentada numa sala de espera, com poltronas, mesas e cadeiras, uma espécie de sala vip, mas para pessoas não necessariamente tão importantes assim. Ao contrário do bar, estava bem vazia. Chegaram e se espalharam Bolsonaro e seus filhos. Dava para perceber que ainda se achavam muito importantes, mesmo tendo perdido a eleição de 2022. Junto com isso, havia um certo temor, indefinido, uma desmoralização. Eles, que acham que ter medo da morte é coisa de maricas, talvez tenham medo de ter medo. São covardes. Ter coragem não é não ter medo, é enfrentar, lidar com o medo.

Ficava olhando e imaginando a pior ofensa que poderia dizer para os cretinos. Um dos filhos me encarava. O pai, que estava de costas para mim, virou-se e disse seu nome, apresentando, em seguida, os filhos. Eu levantei, disse meu nome e inclinei a cabeça sutilmente, à guisa de cumprimento, antes de sair dali.

Pouco depois, quando encontrei vovó, procurava por uma das minhas irmãs, a quem queria contar o sucedido, animada pela derrota da família Bozo e, ao mesmo tempo, meio encabulada por desperdiçar o encontro, a oportunidade de dizer um monte de desaforos. Quando acordei, estava me sentindo aliviada por não ter conseguido xingar.

Certa vez, uma amiga me perguntou “Mari, por que você não manda as pessoas para a puta que pariu, como eu faço?”. Pensei um pouco e respondi, meio na dúvida “Por… educação?”. Agora, acho que é (e espero que seja) mais do que por educação. Continuava, no sonho, a detestar os Bolsonaros, mas eles não podiam mais nos fazer mal. E eu não quis fazê-los sofrer. Pensando bem, honestamente, até quis, mas o não querer foi mais forte. Talvez tenha sido por isso que de manhã pensei tanto na Hannah Arendt, satisfeita com meu sonho, de morte e compaixão.

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