Por Raquel Gutierrez de Azevedo
Advogada, graduada em Direito, Pós-Graduanda em Direito Civil e Direito Processual Civil
Integrante da Rede Brasileira Infância e Consumo
Artigo originalmente publicado no site da Rebrinc
Costumamos mencionar a antiga história da Chapeuzinho Vermelho ao alertar crianças sobre os perigos oferecidos por estranhos, especialmente em se tratando de meninas solitárias. Assim, para proteger nossas crianças – especificamente de abusos sexuais –, enfatizamos ao educá-las que, caso não falem com estranhos, permanecerão seguras.
O dia 18 de maio é conhecido como “Dia Nacional do Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes” e a campanha “Faça Bonito”, implementada pelo Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual, nos convida a refletir sobre o alarmante número de abusos sexuais contra as crianças e adolescentes e, mais do que isso, tomar dianteira no combate, participando de sua prevenção e denúncia. Mas, se somos incisivos em dizer às nossas crianças para não falarem com estranhos, por que esse número continua alto? Não seria fácil perceber quando um adulto desconhecido viola uma criança sexualmente?
Infelizmente os abusos não ocorrem apenas nessas circunstâncias, e, num misto de autonegação e de tentar proteger nossas crianças, não as preparamos para compreender que é possível outros sujeitos como abusadores, podendo ser alguém conhecido ou, aqueles que mais precisam protegê-las. De fato, segundo o Mapa da Violência de 2012, de Júlio Jacob Waiselfisz, 10,2% dos casos de abuso são feitos pelos pais; 10,3% pelos padrastos, 2,2% por mães; 2,6% por irmãos; 28,5% por conhecidos/amigos da família: e 17,9% por desconhecidos (essa não deve ser desconsiderada, especialmente com o aumento do acesso à internet e facilidade de contato de crianças com propensos abusadores).
Ainda, a violência sexual não se configura apenas com o ato sexual, mas de outras formas, como carícias pelo corpo, sexo oral, exposição de órgãos sexuais para as vítimas, apresentar materiais pornográficos e assistir junto com as vítimas, ou simplesmente, olhá-las tomarem banho, se trocarem, etc.
Dentro do gênero violência sexual (qualquer violação aos direitos sexuais de uma criança, com o uso de poder, violência e subordinação) estão os subgêneros abuso (utilizar a criança/adolescente para satisfação dos próprios desejos sexuais) e exploração sexual (usar o corpo da criança/adolescente para extrair algum dinheiro). O adulto abusador considera a vítima como sua posse e desprovida de personalidade, portanto, de direitos, enquadrando-as em uma situação de rígida hierarquia. A quebra do silêncio é improvável pois, além de sentirem dever obediência ao agressor, as vítimas têm medo de represálias e, principalmente, de não serem levadas a sério.
Vale ressaltar que temos uma cultura dominantemente adultocêntrica, a qual nos faz olhar para a criança não como um sujeito de direitos, mas sim como uma etapa necessária para se tornar adulto. Dessa forma, os investimentos feitos na infância não são para o agora, mas sim visando o seu eu futuro. Ao ser objetificada, passa a ser natural a ideia de que a criança “pertence ao adulto” e que seus pais e responsáveis – e demais figuras de autoridade – possuem poderes perante elas, que são silenciadas e devem apenas obedecer. O abuso sexual de alguém vista como objeto que deve obediência passa a ser de certa forma invisibilizado e “tolerado”.
O quadro se agrava quando fazemos um recorte de gênero: também conforme o Mapa da Violência de 2012, 83,2% dos casos de abuso denunciados as vítimas são de meninas. Tal fato pode ser explicado pela nossa sociedade patriarcal, que trata as mulheres como pertencentes ao homem e desprovidas de personalidade. Assim, as meninas são duplamente objetificadas: primeiro como crianças, depois como mulheres, sendo subjulgadas pelo homem adulto a qual pertencem.
A ideia de mulher-objeto já atinge nossas meninas com o fenômeno cada vez mais crescente da adultização precoce. Cada vez mais as vemos usando produtos de beleza, maquiagem, roupas, sapatos e acessórios como se fossem adultas (prática corroborada pela mídia e setor publicitário) e, concomitantemente, reproduzem comportamentos que não são compatíveis com sua faixa etária (como exemplo, meninas que participam de concursos de beleza, funkeiras mirins, vlogueiras, etc). Da mesma maneira com que as mulheres são naturalmente culpadas pelas violações que sofrem aos seus direitos sexuais, as meninas também são julgadas por “provocarem” o agressor, aquele que realmente teria que zelar pela integridade da criança, e não ameaçá-la.
O Direito trata do assunto primeiramente com seu Artigo 227, da Constituição Federal, que dispõe ser dever do Estado, pais e sociedade garantir todos os direitos fundamentais a crianças e adolescentes, além de proteger seu peculiar desenvolvimento de qualquer ameaça. Mais ainda, esse artigo determina que a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.
A prática de Estupro Contra Vulnerável, Corrupção de Menores e Favorecimento a Prostituição ou outra forma de exploração sexual a crianças e adolescentes é criminalizada pelo Direito (Código Penal, Artigos 217, 217 – A, 218, 218 – A e 218 – B), e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) também traz outros dispositivos que criminalizam a violência sexual contra crianças e adolescentes.
Mas não podemos esperar que o Direito solucione sozinho esse grave problema social. A lei não é suficiente para proteger a infância da violação de seus direitos sexuais. É necessário que nós, sociedade, também façamos nossa parte. Mais do que condenar os abusadores, precisamos refletir sobre como vemos e tratamos nossas crianças: realmente as enxergamos e ouvimos? Deixamos a desejar em sua proteção e as tornamos alvos fáceis tanto em casa quanto na rua?
A campanha “Faça Bonito” é uma política pública feita pelo Estado que visa chamar a atenção da sociedade para essa prática bárbara, corriqueira e silenciosa que é o abuso sexual infanto-juvenil, e tem um efeito considerável no aumento das denúncias desses casos. Contudo, mais do que denunciar, é necessário prevenir; é necessário que todos nós, como sociedade e como indivíduos, sejamos chamados a repensar nossa ideia de infância e olharmos as crianças como realmente são, sujeitos de direitos, para enfim lhes conferir a proteção integral que tanto necessitam, incluindo o saudável desenvolvimento sexual.
Muito mais do que metáforas relacionadas ao perigo oferecido por estranhos, precisamos manter um diálogo aberto com os nossos filhos sobre violência e abuso sexual, a fim de lhes dar confiança para falar de qualquer problema sem medo de não ser levada a sério. Além disso, é importante prestar atenção em qualquer sinal de mudança de comportamento e saber com quem o seu filho se relaciona.