Por Maria Isabel Amando de Barros
Engenheira florestal e mestre em Conservação de Ecossistemas.
Trabalha com educação e conservação da natureza.
Uma das mais famosas citações sobre o valor do mundo natural vem de Henry Thoreau, poeta, filósofo e naturalista que ajudou a forjar a forma como entendemos hoje a necessidade de conservar a natureza: In wildness is the preservation of the world, traduzido livremente como “Na dimensão selvagem está a preservação do mundo”.
Mas o que quis dizer Thoreau com dimensão selvagem? Para ele, essa dimensão estava associada a uma essência, a um estado de ser, definida primordialmente por liberdade, automotivação e auto-organização. A dimensão selvagem tão cara a Thoreau não está no manejo florestal, no manejo de populações de animais silvestres, na vigilância onipresente que desejamos implantar na natureza por meio de GPS, drones e satélites. Está na essência de uma dimensão que nós, seres humanos, não controlamos.
E, então, quais são as oportunidades concretas que temos de nos aproximarmos da dimensão selvagem citada por esse pensador? Quais são as fronteiras que cruzam a realidade entre a civilização e a natureza? Para mim, há algumas experiências e momentos nos quais o ser humano pode ter esse encontro, e um deles é a infância.
Quando assistimos ao documentário Território do Brincar (disponível na plataforma Video Camp), uma iniciativa que procura registrar as sutilezas e a espontaneidade do brincar, uma pergunta logo emerge: por que raramente vemos esse brincar potente, autônomo, livre e auto-organizado dentro das cidades, das escolas, dos espaços das crianças?
Pressinto que uma das pistas para responder a essa pergunta é: onde está a dimensão selvagem – entendida aqui como Thoreau a entendeu -, ou seja, onde está a liberdade, a automotivação e a auto-organização das crianças dentro das escolas e das casas, no ambiente urbano?
Quase não está mais. Cedeu espaço para o controle, a pressa, a mediação do brincar, a superproteção, a vigilância, a pressão do “ter que fazer” e aprender alguma coisa. Penso que esses elementos suprimem a combinação de três fundamentos essenciais, mas não os únicos, que embasam a expressão da dimensão selvagem na infância:
1) Tempo: um tempo solto, sem horários ou atividades propostas por adultos, que não se mede pelo relógio, mas pela entrega ao brincar. Quando o Unicef perguntou para crianças entre 8 e 13 anos sobre o que mais contribui para o seu bem-estar, a resposta foi clara, simples e unânime: tempo (particularmente com as famílias), amigos e “ar livre”. O que nos leva ao próximo elemento.
2) Espaço natural, aberto, repleto de desafios, explorações, esconderijos e “partes soltas”: inúmeras pesquisas citadas por Richard Louv no livro Last Child in the Woods, mostram que um brincar mais criativo, alerta, físico e igualitário emerge em ambientes naturais. Dada a opção, a criança escolhe brincar nos cantos mais remotos e desestruturados de um determinado lugar.
3) Liberdade e autonomia: para expressar sua pulsão interna, sua vontade, seu arbítrio, sua capacidade de se auto-organizar no processo do brincar. Liberdade física e de movimento, de arriscar e errar, de se perder e se achar, de ir e vir. Aqui cabe também citar a terceira dimensão do limite, descrita por Yves de La Taille em seu livro Limites: três dimensões educacionais. Nele, o autor diz que as crianças precisam e têm o direito à intimidade e ao segredo.
Para finalizar, gostaria de propor uma reflexão sobre este último elemento, tão caro às crianças. Para muitas delas, não há mais tempo sem adultos por perto, nós estamos sempre lá: as divertindo, restringindo, entretendo, propondo atividades, brincadeiras, passeios, o que fazer, como fazer, quando fazer. Em suma, controlando. Entretanto, há muitos aspectos das experiências das crianças que estariam melhores se elas fossem deixadas sozinhas. Em privacidade.
Ausência de controle não significa abandono. Certa vez, conheci uma educadora de uma comunidade no sul da Bahia que me disse: “Aqui, não brincamos com as crianças. Aqui, as crianças brincam sozinhas”. Por quê? “Para que elas tenham a oportunidade de descobrir o seu próprio brincar e não o de algum adulto. Porque, em pouco tempo, o adulto cansa de brincar e vai fazer outra coisa”. Ao adulto basta estar presente, por inteiro, presenteando a criança com a escuta e o olhar sensíveis.
Ausência de controle tampouco significa falta de disciplina, crianças malcriadas ou rebeldes. Determinação e vontade não significam egoísmo, e autonomia – em relação si mesmo – não é sinônimo de desrespeito aos outros.
Acredito que nós, adultos, precisamos encontrar o equilíbrio entre ambientes preparados e o caos imprevisível da natureza; mediação e auto-regulação; estímulos e tédio; segurança e risco; presença e ausência. Precisamos aceitar ter menos controle sobre as crianças. Precisamos acreditar que, sim – como mostra o belíssimo Território do Brincar –, as crianças sabem brincar se lhes é dada a oportunidade de serem selvagens –autônomas, mestres, espontâneas, competentes e livres.
Que nós possamos honrar a dimensão selvagem que há em cada criança. Que a sua pulsão seja reconhecida como valorosa e digna e possa expressar-se em toda sua beleza e naturalidade.