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Resenha de livro

As crianças e os desenhos animados, de Adriana Hoffman Fernandes, por Luiz Antônio Coelho.

Por Luiz Antônio Coelho
Diretor do Departamento de Artes & Design da PUC-Rio  

O livro As crianças e os desenhos animados (Editora NAU), de Adriana Hoffman Fernandes, lançado este ano, nos traz uma pesquisa realizada há dez anos (finda em 2002), mas muito atual porque a frequência de uso da televisão pela criança não deve ter mudado tão drasticamente desde então. Se mudou por causa de outras tecnologias, não terá mudado tanto no que se refere aos impactos apontados por Adriana. E muito daquilo que Adriana coloca em relação à TV, pode ser levado ao uso do computador e dos novos gadgets que conhecemos. Parece-nos que hoje, talvez, o computador ganhe da TV na disputa pela audiência e atenção da criança e do jovem mais pelo menu de possibilidades, que inclui a própria programação televisiva. Mas ainda tem os jogos eletrônicos, redes sociais ou comércio eletrônico.

A escolha feliz de buscar a relação da criança com a TV em séries de animação é um ponto a se destacar no trabalho. O tipo de animação enfocado por Adriana possui uma característica, que é a de gerar um modelo de texto que, por sua natureza específica, não tem compromisso com a representação realista, seja ela em sua feição imagética e sonora (na captação de um referente exterior do que chamamos de realidade através do processo de fotográfico tradicional), seja ela na busca pela narrativa e/ou na lógica de causa e efeito do documentário. Essa liberdade dá margens a “voos” interpretativos. Não que a animação não possa ser realista, pois a tecnologia permite e os objetivos do animador são aos mais variados: ele tanto pode fazer documentário via animação como optar por fantasia chamada adulta; pode optar pela lógica narrativa aristotélica quanto pela história sem princípio, meio e fim; pode querer buscar a aparência do real ou a imagem vanguardista. De qualquer maneira, a animação caracteriza-se, de modo geral e classicamente, como um tipo de representação e narrativa livres de amarras realistas. No caso das séries examinadas por Adriana, há momentos em que a identificação com as personagens ocorre por questões do tratamento realista dado ao tema, como o de Ginger. Mas certamente não é o caso de Dragon Ball, Sakura ou Os Simpsons, que se afastam da matriz narrativa realista que nos legou o romance literário.

O resultado aqui é que as histórias relacionam-se com a criança pelo imaginário e não pelo compromisso com a realidade; a “lógica” da fantasia prevalece. Assim, a meu ver, Adriana verifica no discurso de seus sujeitos a construção da subjetividade, da identidade grupal e da cultura da faixa etária enfocada sob interação com esse tipo de texto, cujos resultados estão mapeados e analisados no livro.

Um segundo ponto que gostaria de ressaltar é o do letramento televisual, na relação Educação/Comunicação. Adriana nos evidencia que num contexto de mídias audiovisuais, não há como prescindir desse letramento na escola e também em outros mediadores como a família, a religião ou, os grupos sociais que se frequenta. O que me leva a outro ponto, que é o do multiletramento.

Não estamos mais vivendo num contexto de dez anos atrás, quando Adriana terminou sua pesquisa. Vivemos a fusão tecnológica, e aqui cito Henry Jenkins (2006), e o que Gilles Lipovestky e Jean de Srroy chamaram de “telosfera” (2009).[1]

Eu acrescentaria que não podemos mais falar neste ou naquele meio de comunicação com fez McLuhan (1994), ao identificar o meio com a tecnologia. O imbricamento de tecnologias faz com que hoje o telefone não seja mais só telefone; a TV não seja mais só TV, rádio, vídeo, games e mesmo o computador não é representado pela mesma tecnologia de dez anos atrás. Nem o livro ou o jornal são os livros, jornas ou revistas de alguns anos atrás. Hoje temos de adaptar nosso vocabulário e pensar na mediação, no processo, e não em um meio individualizado com implicações inscritas em uma tecnologia singular. Aqui o termo “mediação” vai ganhar uma acepção diferente daquela trazida por Barbero ou Orozco-Gomes, conforme o texto de Adriana. Aqui ele quer dizer “fusão de antigas mídias”.

Daí que a realidade nos exige, e não apenas da criança ou do mestre, um desempenho com a mediação tecnológica que compreende o que chamamos de multiletramento. Isso acontece e precisa acontecer sem o que o mundo passa a não mais fazer sentido para o “iletrado tecnológico”. Ele torna-se um excluído e não consegue funcionar neste cenário. Fujo aqui das expressões muito usadas para estes casos de “analfabeto funcional ou analfabeto tecnológico”. O conceito tradicional de um indivíduo analfabeto pode implicar a ideia de que ele não funciona em determinado contexto social porque não domina a linguagem verbal escrita. Na realidade, as pessoas funcionam através dos conhecimentos que carregam; conhecimentos que são das mais variadas naturezas e origens; podem ser de natureza livresca ou não; podem advir das mídias visuais ou da experiência de vida. O analfabeto apenas não decodifica um tipo de linguagem, mas, com certeza, domina outras linguagens. Temo que o termo “analfabeto” possa trazer muito preconceito em relação à capacidade humana.  Uso “iletrado” porque nos dá uma ideia mais precisa de um simples desconhecimento de código e não de interação social.

O livro de Adriana chama, portanto, a atenção para algo que é atual hoje como era em 2002: a necessidade de compreendermos a construção da realidade pelo viés da mídia. Temas como o da passividade versus construção da realidade a partir dos textos veiculados na televisão, ou o do incremento da violência no comportamento do jovem associado à televisão pela Teoria dos Efeitos se repete em relação aos videogames, filmes ou vídeos veiculados na telosfera.

Para entendermos ou até discutirmos o tema precisamos também nos tornar interatores (afastando a noção da passividade do termos receptor/espectador), isto é, leitores em um novo concerto de mídias.

Embora Adriana não adote a metodologia clássica da Análise de Discurso de Pêcheux (1988, 1990 e 1994) ou Orlandi (1994, 1996 e 1999), recupera o relato como matéria de análise, enquanto espaço de criação, reforço de sentido e socialização. Parte de moldura teórica consistente como Orozco-Gomes, Canclini, Martin-Barbero ou Beatriz Sarlo, entre outros.

Seu texto é um presente para mestres, pais e para quem queira abordar o tema fascinante da relação da Educação com a Comunicação.

BIBLIOGRAFIA

– FERNANDES, Adriana Hoffmann. AS CRIANÇAS E OS DESENHOS ANIMADOS. Mediações nas produções de sentidos. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2012.
– 
JENKINS, Henry. Convergence Culture: Where Old and New Media Collide. New York: New York University Press, 2006.
– 
LEVIN, Thomas Y., FROHNE, Ursula and WEIBEL, Peter. CTRL [SPACE]: Rhetorics of Surveillance from Bentham to Big Brother. Cambridge: MIT Press, 2002.
– 
LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean, 2009. A tela global. Porto Alegre: Sulina.
– 
McLUHAN, Marshall, Understanding Media: The Extensions of Man. New York: McGraw-Hill, 1964. Reprint, with an introduction by Lewis Lapham, Cambridge, MA: MIT Press, 1994.
– 
ORLANDI, E. P. (org.) Gestos de leitura – Da História no discurso. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994.
– 
_______. Interpretação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
– 
_______. Análise do discurso – Princípios e procedimentos. Campinas: SP: Pontes, 1999.
– 
PÊCHEUX, M. Les Vérités de la Palice. Paris: Maspero, 1975. Tradução brasileira: Semântica e discurso. Campinas: UNICAMP, 1988.
– 
_______. O discurso – estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 1990.
– 
_______. Ler o arquivo hoje, 1985, In: ORLANDI E. P. (org.) Gestos de leitura – Da História no Discurso. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994.

[1]
Ver também LEVIN, Thomas Y., FROHNE, Ursula and WEIBEL, Peter. CTRL [SPACE]: Rhetorics of Surveillance from Bentham to Big Brother. Cambridge: MIT Press, 2002.

 

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