Pesquisar
Close this search box.

conheça o programa

João Köpke, precursor de Monteiro Lobato

Do Jornal da Unicamp

O nome dele é lembrado por pesquisadores da área da educação, mas pouco citado na história da literatura infantil. O educador e escritor brasileiro João Köpke, no entanto, pode ser considerado um dos precursores de Monteiro Lobato, a quem foi atribuída, de fato, a inauguração da literatura infantil brasileira. As contribuições de Köpke, nesta área, agora estão mais ao alcance dos olhos. Em tese de livre docência, a professora da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, Norma Sandra de Almeida Ferreira estudou o manuscrito Versos para os pequeninos, guardado pela família do educador por mais de um século. Digitalizado, o manuscrito foi publicado pela Fapesp em versão online, em uma edição fac-similar, que preserva suas características originais.

Bacharel formado em Direito pelo Largo São Francisco e filho de educador, João Köpke nasceu em Petrópolis (RJ), em 1852, mas trabalhou por muitos anos no Estado de São Paulo, tendo sido inclusive professor em duas escolas de Campinas (SP). Além de Versos para os pequeninos, o grupo Alfabetização, Leitura e Escrita (Alle), coordenado por Norma, também pesquisou outro manuscrito de Köpke, A cartilha de Hilda. Methodo de leitura pelo processo analytico. Ambos foram emprestados à Unicamp pela bisneta do educador, Maria Lygia Köpke dos Santos, que estudou a cartilha analítica em sua tese de doutorado defendida em 2013, na Faculdade de Educação.

A Cartilha de Hilda traz, em sua capa, a data de 1902, enquanto Versos para os pequeninos foi, provavelmente, elaborado entre 1886 a 1897. De acordo com a docente, Köpke se sobressai na história da educação pela sua atuação como intelectual brilhante, “mestre escola” e pelos seus livros de leitura, reeditados até meados do século XX. O que o manuscrito Versos para os Pequeninos confirma é a irreverência do autor no trato com a linguagem, com a forma e temáticas inscritas na maioria de seus poemas. Na entrevista a seguir, Norma destaca a importância dos manuscritos do educador, sobretudo aquele estudado por ela, para a história da literatura infantil no país.

Jornal da Unicamp ­– O método analítico de alfabetização defendido pelo João Köpke era polêmico na época dele ou é polêmico ainda hoje?
Norma Ferreira – Como sabemos, a discussão sobre o melhor método de alfabetização oscila entre aqueles denominados de “tradicionais”, que partem da menor unidade da língua (letra ou fonema) compondo depois as sílabas, palavras, frases, textos, como vemos até hoje em algumas cartilhas, e os que têm, como ponto de partida, o todo (texto, frase, palavra). Köpke, ainda que tenha iniciado no magistério como autor aderido ao método sintético, no final do século XIX, elaborou também cartilhas seguindo o método analítico da leitura, tornando-se reconhecido pela defesa desse método. O Livro de Hilda, manuscrito, do qual não conhecemos nenhuma edição, é a concretização do modo como “aplicava” o método analítico, conforme mostram os estudos de Maria Lygia. Essa obra encanta, não só porque se encontra em versão manuscrita, mas pela riqueza e variedade dos recursos visuais e textuais – jogo de cores, de tamanho e de forma das letras – calcados no método intuitivo; pela quantidade e diversidade de exercícios propostos em torno da oralização e visualização da escrita; pela alternância e combinação entre escrita e desenho; e pelo número de histórias que a compõem em seus diversos gêneros (poemas, peça de teatro, narrativas, trava-línguas) e tamanhos de linhas. Embora Köpke seja autor reconhecido pelos seus livros de leitura, adotados para uso nas escolas do país, é realmente lastimável constatarmos que O Livro de Hilda ficou “perdido” em sua versão manuscrita por mais de cem anos. Os motivos que levaram a não publicação desta obra têm sido investigados por pesquisadores, como por exemplo, o fez Maria Lygia.

Jornal da Unicamp – O manuscrito trabalhado pela senhora sugeria que tipo de publicação?
Norma Ferreira – Em Versos para os pequeninos, não temos informações sobre os usos previstos para este material. Levantamos como hipóteses de que poderia tanto ser um material indicado para trabalhar em sala de aula, como um boneco de livro a ser apresentado para a publicação. Na minha tese, acabo defendendo que é um boneco de livro diante dos vestígios deixados pelo autor, como: capricho dado ao todo da obra; a presença de uma epígrafe, de uma página de rosto cuidadosamente trabalhada, de um espaço em branco, como se fosse para nele se inscrever uma apresentação posteriormente; a proposta de divisão do caderno em dois conjuntos de poemas, entre outros.

Jornal da Unicamp – Köpke faz sugestões de diagramação?
Norma Ferreira – Eu costumo dizer que o manuscrito, de certa forma, nos faz lembrar a poesia concreta, em que a forma traz o desenho do conteúdo dos poemas. Já no título, com o desenho das letras, Joao Köpke está brincando com o leitor pressuposto para a obra: a criança. Algumas delas têm formato de uma espada, outras ganham pernas, como se estivessem andando, se esparram pela página, os traços das letras são engordados ou afinados. Nós não sabemos se, caso o livro fosse publicado, o autor o manteria dessa forma. Mas há um projeto estético-pedagógico intencionalmente traçado que provavelmente seria mantido. Os poemas vêm sempre numa página única, à direita e à esquerda há uma imagem a eles relacionada. A disposição dos versos na folha também não é tradicional. Vemos o uso da régua a orientar a disposição dos versos, acompanhando, por exemplo, o assunto do poema: uma lua decrescente ou um rabo de gato enrolado. Um jogo entre uma letra cursiva caprichada e um ato criativo na temática e na visualidade dos versos. Vamos imaginar que, num tempo no qual a cultura digital é predominante, esse trabalho chama atenção porque nos traz a memória da cultura manuscrita, da letra cursiva, caligrafia própria dos homens que a usaram durante séculos. A obra é reveladora de um cuidado e capricho desse autor, que com uma irreverência – ainda que comedida para a época – brinca com seu leitor.

Jornal da Unicamp – Como a senhora trabalhou com a autoria desse material?
Norma Ferreira – Pedi um exame grafotécnico para comprovar se a letra era realmente de João Köpke. No Arquivo Nacional do Rio de Janeiro existe uma carta do educador, de próprio punho, solicitando para o Imperador que seus livros fossem adotados nas escolas. Também foi usada uma outra carta escrita por ele para seu neto e que está no IEB-USP. As anotações a lápis, ao lado dos poemas, também foram examinadas e foram atribuídas a um dos filhos dele, Winckelmann Köpke, também bacharel e escritor como o pai. Comparando com documentos cedidos pela família Köpke, pudemos comprovar a autoria de ambos, diferenciando a escrita e também a finalidade prevista para este material.

Jornal da Unicamp – Como eram os livros didáticos nessa época?
Norma Ferreira – Os livros escolares (de leitura para fruição e distração) traziam sempre a preocupação dos autores em educar as crianças, ensinando noções de higiene, bom comportamento, moral e religioso. Formar e educar as crianças segundo os valores que os adultos consideravam importantes na época: cidadãs, religiosas, com ideais republicanos, obedientes, generosas etc. O ler se transformava em instrumento de ilustração e sinal de civilidade na convivência das crianças com muitos livros (escolares).

Jornal da Unicamp – A senhora menciona a irreverência de Köpke, como isso aparece no conteúdo dos poemas?
Norma Ferreira – Köpke não está preocupado em “formar” a criança, apenas de acordo com o modelo de bom comportamento, da época. Em um dos poemas, por exemplo, as crianças mandam a lua “plantar batatas”, em outro, a filosofia é representada por uma gata que está mais preocupada com a comida do que com as ideias, ou seja, em Versos para os pequeninos, os gatos fazem travessuras, jogam tinteiro e cadernos no chão, as crianças bagunçam a casa e questionam os adultos, e a escola que ensina “ba, be, bi, bo, bu” aparece como “uma amolação”.

Jornal da Unicamp – Ele se preocupa com o lúdico também?
Norma Ferreira – Sim. Divertido e bem-humorado. Se alguns poemas civilizam, segundo valores concernentes ao modelo de obediência, generosidade e retidão moral de caráter, a maioria deles relativiza a cisão entre a ficção e a realidade, a seriedade e o humor e põe como centralidade uma criança viva, esperta, curiosa. É um autor que dá a voz para a criança. Ele traz a fala da criança para o poema, em um trabalho com a linguagem que é totalmente original e diferente do que era produzido na época para as crianças. Aparecem por exemplo, o título do poema “Ato Ílis”, em vez de “Arco-Íris”, as expressões, como “ti massada”, “fazeu”, “adola”; “ti bintá” etc. Uma transcrição da representação da modalidade oral da língua, tal como as crianças o fazem. Por esses mesmos motivos, quando Monteiro Lobato lança, na década de 1930, Reinações de Narizinho, a crítica afirma que ele inaugura a literatura infantil brasileira porque é o primeiro que traz uma irreverência com a boneca/Emília. O que a Emília faz? Ela fala “errado”, inventa palavras, critica os adultos, ela inventa “modas”. Comumente, os livros produzidos para crianças são ciosos no uso correto da língua (narrador e personagens) com o temor de que a criança possa aprender também a escrita na forma “errada”. Na época de João Köpke, os livros para crianças, mesmo aqueles que reproduziam os contos populares e de tradição oral, eram reescritos no uso correto da modalidade escrita padrão. Köpke, em Versos para os pequeninos, rompe com esta visão. Köpke ainda inova trazendo a música, a cantiga popular e a cultura oral para os poemas, com rimas simples, no gênero lírico, que nos fazem lembrar nossa literatura de cordel. Trata-se de um texto musicado, com refrões, onomatopeias, trocadilhos, que sugerem um efeito sonoro, ritmo, melodia muito a gosto do universo infantil. A facilidade da leitura ou a intenção de aguçar o interesse da criança não se constituem apenas do assunto – com animais e pessoas que são do seu mundo – também explorado na gravura, mas principalmente de um “ajuste”, com simplicidade, do uso da linguagem que se coloca, frequentemente, de forma direta, econômica, com versos curtos recheados de exclamação, interrogação, reticências e vírgulas.

Faça aqui o seu cadastro e receba nossa news

0 0 votes
Avaliação
Subscribe
Notify of
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments

Categorias

Arquivos

Tags

Você pode gostar